Papa Francisco foi um sopro de modernidade na Igreja Católica

21/04/2025 Depoimentos, Destaques, Notícias, Victor Vasconcelos 0

Presidente Lula decretou luto oficial de sete dias no Brasil pela morte do Papa Francisco.

Vocês não lerão muitos textos meus aqui sobre religião. Não é o tema desta coluna nem o assunto que me considero conhecedor o suficiente para escrever sobre. Contudo, a morte do Papa Francisco exige algumas palavras minhas e de todos os defensores das ideias progressistas e humanitárias que ele sempre apregoou. Papa Francisco representou um sopro de modernidade na Igreja Católica. Sucedendo dois papas reconhecidamente conservadores e, até mesmo com ideais reacionários, João Paulo II e Bento XVI, abriu o caminho para uma série de “revoluções” internas em temas antes vistos como tabus.

Comete um grave erro quem olha para a Igreja Católica e enxerga somente uma instituição religiosa e espiritual. Ela é muito mais do que isso. É uma força política e social no mundo todo. Discursos e decisões tomadas pelo líder do Vaticano ganham um poder e uma reverberação que, talvez, somente o presidente dos Estados Unidos possua. Me arrisco a dizer que nem a ONU e isso pode ser bom ou muito ruim. A Igreja Católica tem mais de 1,3 bilhão de membros em todo o planeta. Ela está em, praticamente, todos os países do mundo. Cerca de 40% dos católicos estão na América Latina, a região com mais praticantes.

Uma prova de que a atuação do Papa transcende os limites da espiritualidade são as acusações de que Francisco sofre agora, com inúmeros perfis de extrema-direita celebrando a morte do “Papa Comunista” e desejando que “ele vá para o inferno”. Em 1958, foi eleito o Papa João XXIII, conhecido como o “Papa Bom” ou o “Papa da Bondade”. Ele também sentiu na pele a ira dos conservadores de plantão, que o acusavam de ser “maçom”, “radical esquerdista” e “herege modernista”. Isso por ter convocado o Concílio Vaticano II e promovido a liberdade religiosa e o ecumenismo. O Concílio foi uma reunião de mais de 2000 Prelados do mundo todo, que durou de 1962 a 1965, com o objetivo de discutir e regulamentar vários temas da Igreja Católica. Foi uma espécie de atualização da Igreja diante da nova ordem mundial pós-guerra.

Paulo VI sucedeu a João XXIII e abriu a Igreja para o mundo, sendo o primeiro Bispo de Roma a viajar de avião, a visitar os cinco continentes e a ir à Terra Santa. Exigiu das nações ricas da América e da Europa mudanças significativas de tratamento e ajuda aos países pobres do Terceiro Mundo. Seu pontificado decorreu durante mudanças revolucionárias no mundo, como a Revolução dos Cravos, a Guerra Fria, a Crise dos Mísseis de Cuba, a Guerra do Vietnã, o Festival de Woodstock, Beatles e muitos outros transtornos. O caminho estava sendo pavimentado para uma igreja mais próxima dos mais necessitados e dos ensinamentos de humildade, justiça e fé de Jesus Cristo. O mundo mudava. As relações sociais assumiam novas configurações, as mulheres exigiam seus direitos reprodutivos e sexuais, negros, homossexuais e pessoas com deficiência saíam de seu isolacionismo e faziam suas vozes serem ouvidas.

A Igreja Católica não entendeu nada disso. Ao mesmo tempo em que a história mostrava vários experimentos sociais de modernidade e progresso, setores reacionários cresciam na Igreja e barravam várias dessas modernidades. Esses setores tiveram seu grande representante no Papa João Paulo II, eleito no Conclave de 1978. O polonês Karol Wojtyła sentou na cadeira de Pedro por 26 anos e 168 dias, o terceiro pontificado mais longo da história. João Paulo II é o Papa que eu mais acompanhei, com exceção de Francisco. Eu o considero o maior responsável por enterrar a Igreja em um período de obscurantismo político e social. João Paulo condenou todas as reformas sociais no seio da Igreja, barrou o uso de preservativo em um tempo de alastramento da AIDS, coibiu qualquer discussão contra o celibato dos padres e freiras, segregou pessoas homoafetivas e perseguiu e criminalizou a Teologia da Libertação e seus seguidores.

A perseguição à Teologia da Libertação é talvez a mácula maior do pontificado de João Paulo II. Nela, o pontífice escreveu em pedra que não tinha interesse em modernizar a Igreja, a fundo. A Teologia da Libertação é uma abordagem teológica cristã, que enfatiza a libertação dos oprimidos. Envolve análises socioeconômicas, com preocupação social com os pobres e a libertação política dos povos oprimidos. É mais conhecida na América Latina, especialmente dentro do catolicismo na década de 1960, após o Concílio Vaticano II, onde se tornou a práxis política de teólogos como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Jesuítas, como Juan Luis Segundo e Jon Sobrino. Ficou popular a frase “opção preferencial pelos pobres”. A Teologia era uma reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, mas seus adversários a descrevem como muito próxima das doutrinas marxistas. João Paulo II incumbiu o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), de realizar advertências e, em último caso, condenar e punir seus praticantes.

Chegamos em Francisco. Em 19 de março de 2013, a fumaça branca tomou os céus do Vaticano e a frase Habemus Papam marcou o fim do Conclave. Surgiu, então, o argentino Jorge Mario Bergoglio, quebrando inúmeras tradições da Igreja. Foi o primeiro Sumo Pontífice latino-americano, o primeiro das Américas, o primeiro do Hemisfério Sul e o primeiro não europeu em 1200 anos. Em sua apresentação, Bergoglio anunciou mais uma quebra de tradição. Ele assumiu o nome de Francisco, se tornando o primeiro Papa da Ordem dos Jesuítas. Francisco iniciou sua trajetória com enorme simplicidade, humildade e informalidade. Ele abriu mão de morar no Palácio Apostólico e optou por residir na casa de hóspedes Domus Sanctae Marthae, ao lado da Basílica de São Pedro. Francisco manteve várias visões tradicionais da Igreja sobre aborto, casamento, ordenação de mulheres e celibato, mas abriu a discussão sobre eles, de forma séria e robusta.

Não me aprofundei em relação ao Papa João Paulo II e também não o farei sobre Francisco. Digo apenas que saúdo seu papado e suas iniciativas de promover um debate franco e verdadeiro sobre aceitação do casamento homoafetivo, fim do celibato dos padres e maior participação de mulheres nos cargos diretivos da Igreja, principais falhas da Igreja Católica no momento. Também saúdo seu maior legado: a denúncia contra as desigualdades sociais, as guerras e sua forte e intransigente defesa dos pobres. A Igreja Católica, agora, deve a ele e ao mundo o respeito a este legado, elegendo um sucessor que possa dar o passo seguinte e continuar as obras de Francisco. Não se concebe um retrocesso. Este é o grande desafio que, certamente, os 135 cardeais aptos a votar, dos quais ele escolheu 108, enfrentarão no Conclave, nas próximas semanas. Os olhos do mundo estarão voltados para o Vaticano. Descanse em paz, Jorge Mario Bergoglio.

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