Papa Francisco foi um sopro de modernidade na Igreja Católica

Presidente Lula decretou luto oficial de sete dias no Brasil pela morte do Papa Francisco.
Vocês não lerão muitos textos meus aqui sobre religião. Não é o tema desta coluna nem o assunto que me considero conhecedor o suficiente para escrever sobre. Contudo, a morte do Papa Francisco exige algumas palavras minhas e de todos os defensores das ideias progressistas e humanitárias que ele sempre apregoou. Papa Francisco representou um sopro de modernidade na Igreja Católica. Sucedendo dois papas reconhecidamente conservadores e, até mesmo com ideais reacionários, João Paulo II e Bento XVI, abriu o caminho para uma série de “revoluções” internas em temas antes vistos como tabus.
Comete um grave erro quem olha para a Igreja Católica e enxerga somente uma instituição religiosa e espiritual. Ela é muito mais do que isso. É uma força política e social no mundo todo. Discursos e decisões tomadas pelo líder do Vaticano ganham um poder e uma reverberação que, talvez, somente o presidente dos Estados Unidos possua. Me arrisco a dizer que nem a ONU e isso pode ser bom ou muito ruim. A Igreja Católica tem mais de 1,3 bilhão de membros em todo o planeta. Ela está em, praticamente, todos os países do mundo. Cerca de 40% dos católicos estão na América Latina, a região com mais praticantes.
Uma prova de que a atuação do Papa transcende os limites da espiritualidade são as acusações de que Francisco sofre agora, com inúmeros perfis de extrema-direita celebrando a morte do “Papa Comunista” e desejando que “ele vá para o inferno”. Em 1958, foi eleito o Papa João XXIII, conhecido como o “Papa Bom” ou o “Papa da Bondade”. Ele também sentiu na pele a ira dos conservadores de plantão, que o acusavam de ser “maçom”, “radical esquerdista” e “herege modernista”. Isso por ter convocado o Concílio Vaticano II e promovido a liberdade religiosa e o ecumenismo. O Concílio foi uma reunião de mais de 2000 Prelados do mundo todo, que durou de 1962 a 1965, com o objetivo de discutir e regulamentar vários temas da Igreja Católica. Foi uma espécie de atualização da Igreja diante da nova ordem mundial pós-guerra.
Paulo VI sucedeu a João XXIII e abriu a Igreja para o mundo, sendo o primeiro Bispo de Roma a viajar de avião, a visitar os cinco continentes e a ir à Terra Santa. Exigiu das nações ricas da América e da Europa mudanças significativas de tratamento e ajuda aos países pobres do Terceiro Mundo. Seu pontificado decorreu durante mudanças revolucionárias no mundo, como a Revolução dos Cravos, a Guerra Fria, a Crise dos Mísseis de Cuba, a Guerra do Vietnã, o Festival de Woodstock, Beatles e muitos outros transtornos. O caminho estava sendo pavimentado para uma igreja mais próxima dos mais necessitados e dos ensinamentos de humildade, justiça e fé de Jesus Cristo. O mundo mudava. As relações sociais assumiam novas configurações, as mulheres exigiam seus direitos reprodutivos e sexuais, negros, homossexuais e pessoas com deficiência saíam de seu isolacionismo e faziam suas vozes serem ouvidas.
A Igreja Católica não entendeu nada disso. Ao mesmo tempo em que a história mostrava vários experimentos sociais de modernidade e progresso, setores reacionários cresciam na Igreja e barravam várias dessas modernidades. Esses setores tiveram seu grande representante no Papa João Paulo II, eleito no Conclave de 1978. O polonês Karol Wojtyła sentou na cadeira de Pedro por 26 anos e 168 dias, o terceiro pontificado mais longo da história. João Paulo II é o Papa que eu mais acompanhei, com exceção de Francisco. Eu o considero o maior responsável por enterrar a Igreja em um período de obscurantismo político e social. João Paulo condenou todas as reformas sociais no seio da Igreja, barrou o uso de preservativo em um tempo de alastramento da AIDS, coibiu qualquer discussão contra o celibato dos padres e freiras, segregou pessoas homoafetivas e perseguiu e criminalizou a Teologia da Libertação e seus seguidores.
A perseguição à Teologia da Libertação é talvez a mácula maior do pontificado de João Paulo II. Nela, o pontífice escreveu em pedra que não tinha interesse em modernizar a Igreja, a fundo. A Teologia da Libertação é uma abordagem teológica cristã, que enfatiza a libertação dos oprimidos. Envolve análises socioeconômicas, com preocupação social com os pobres e a libertação política dos povos oprimidos. É mais conhecida na América Latina, especialmente dentro do catolicismo na década de 1960, após o Concílio Vaticano II, onde se tornou a práxis política de teólogos como Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff e Jesuítas, como Juan Luis Segundo e Jon Sobrino. Ficou popular a frase “opção preferencial pelos pobres”. A Teologia era uma reinterpretação analítica e antropológica da fé cristã, mas seus adversários a descrevem como muito próxima das doutrinas marxistas. João Paulo II incumbiu o então prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Joseph Ratzinger (futuro Papa Bento XVI), de realizar advertências e, em último caso, condenar e punir seus praticantes.
Chegamos em Francisco. Em 19 de março de 2013, a fumaça branca tomou os céus do Vaticano e a frase Habemus Papam marcou o fim do Conclave. Surgiu, então, o argentino Jorge Mario Bergoglio, quebrando inúmeras tradições da Igreja. Foi o primeiro Sumo Pontífice latino-americano, o primeiro das Américas, o primeiro do Hemisfério Sul e o primeiro não europeu em 1200 anos. Em sua apresentação, Bergoglio anunciou mais uma quebra de tradição. Ele assumiu o nome de Francisco, se tornando o primeiro Papa da Ordem dos Jesuítas. Francisco iniciou sua trajetória com enorme simplicidade, humildade e informalidade. Ele abriu mão de morar no Palácio Apostólico e optou por residir na casa de hóspedes Domus Sanctae Marthae, ao lado da Basílica de São Pedro. Francisco manteve várias visões tradicionais da Igreja sobre aborto, casamento, ordenação de mulheres e celibato, mas abriu a discussão sobre eles, de forma séria e robusta.
Não me aprofundei em relação ao Papa João Paulo II e também não o farei sobre Francisco. Digo apenas que saúdo seu papado e suas iniciativas de promover um debate franco e verdadeiro sobre aceitação do casamento homoafetivo, fim do celibato dos padres e maior participação de mulheres nos cargos diretivos da Igreja, principais falhas da Igreja Católica no momento. Também saúdo seu maior legado: a denúncia contra as desigualdades sociais, as guerras e sua forte e intransigente defesa dos pobres. A Igreja Católica, agora, deve a ele e ao mundo o respeito a este legado, elegendo um sucessor que possa dar o passo seguinte e continuar as obras de Francisco. Não se concebe um retrocesso. Este é o grande desafio que, certamente, os 135 cardeais aptos a votar, dos quais ele escolheu 108, enfrentarão no Conclave, nas próximas semanas. Os olhos do mundo estarão voltados para o Vaticano. Descanse em paz, Jorge Mario Bergoglio.
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