Autismo merece respeito, Donald Trump

Fernanda Cavalieri levanta diversos fatores que tornam a vida de famílias de autistas muito difíceis.
Sem Barreiras publicou, nesta semana, o texto Paracetamol não provoca Autismo (aqui), tratando de uma afirmação do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de o uso do medicamento, princípio ativo do Tylenol, por mulheres grávidas, seria o causador do que ele chamou de “epidemia de autismo” naquele país. O texto apresentou também as inúmeras reações negativas de entidades, associações e pesquisadores do tema do Transtorno do Espectro Autista (TEA), garantindo que não há nenhuma comprovação científica deste fato e de que o autismo é extremamente complexo para ser reduzido ao uso de um único medicamento. Neste texto, vou considerar algumas questões adjacentes e que são igualmente essenciais para entendermos o que está acontecendo e o nível de gravidade da declaração do presidente norte-americano.
Primeiro, é importante contextualizar. Os Estados Unidos têm registrado um número crescente de pessoas autistas desde 2000. Em 2020, por exemplo, a taxa entre crianças de oito anos atingiu 2,77%, de acordo com os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDCs), dos Estados Unidos, acima dos 2,27% em 2018 e dos 0,66% em 2000. É um aumento grande, sem dúvida, o que provoca o questionamento dos motivos. A causa do autismo sempre provocou dores de cabeça nos cientistas. Em meados do século XX, por exemplo, surgiu a teoria da “mãe geladeira”, isto é, o autismo era causado pela falta de afeto das mães por suas crianças, daí o termo geladeira. A teoria foi popularizada pelo médico ucraniano Leo Kanner (1894-1981) e o psicanalista austríaco Bruno Bettelheim (1903-1990). A partir dos anos 60 e 70, o autismo foi reconhecido pela comunidade científica como um transtorno neurológico e não um problema social ou de desenvolvimento emocional. Nas décadas de 80 e 90, foram refutadas as teses de que o autismo seria provocado pelos efeitos da vacina tríplice. O Paracetamol, portanto, é a vítima da vez.
A compreensão atual em torno do autismo é de que ele é causado pela combinação de fatos genéticos e ambientais. A genética possui um papel fundamental, com a identificação de mais de mil genes correlacionados com a condição, e os fatores ambientais também devem ser levados em consideração. A prematuridade, a idade avançada dos pais, a exposição a substâncias tóxicas ou tratamentos específicos e ainda complicações durante a gravidez têm seu quinhão de responsabilidade. O médico Rodrigo Silveira, marido da psicóloga e neurocientista Mayra Gaiato, especialistas no assunto, citou a idade avançada dos pais como fato de risco. Os dois são casados e possuem um filho com a condição. Segundo ele, a gravidez de Mayra veio quando ele tinha 40 anos. Há décadas, o autismo vem sendo estudado no mundo todo. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), existem cerca de 70 milhões de pessoas diagnosticadas com a condição em todo o planeta e, mesmo com tanto dinheiro e esforço investidos nas pesquisas, ainda não se chegou a uma conclusão.
O pronunciamento do presidente norte-americano provoca pânico e medo nas pessoas. Vamos nos lembrar de que estamos tratando do chefe de Estado mais poderoso do mundo. Sua fala, naturalmente, chama atenção e provoca debates. No mínimo, levanta suspeitas. Quantas e quantas pessoas baseiam seus comportamentos e decisões pela fala dos chamados “especialistas”? Quem vai dizer que o presidente dos Estados Unidos, acompanhado do Secretário de Saúde e Serviços Humanos do país, Robert F. Kennedy Jr., não é um especialista? “Se ele falou é porque sabe do que está dizendo”. Esta frase, certamente, está na cabeça de inúmeras mulheres grávidas dos EUA e elas vão levar esta certeza aos seus médicos quando eles receitarem um remédio tão básico e conhecido como o Paracetamol. O mesmo raciocínio vale para as vacinas. Em meio à pandemia do novo Coronavírus, o então presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, afirmou que as vacinas chinesas faziam as pessoas virarem jacaré ou que elas vinham com o vírus do HIV implantado. Resultado: uma enorme recusa em se vacinar e mais de 700 mil pessoas perderam as vidas.
A ignorância e a irresponsabilidade de Donald Trump estão patentes, mas fica a pergunta: por que os índices de autismo têm aumentado nos Estados Unidos? Volto, então, ao casal Mayra Gaiato e Rodrigo Silveira. Em live no seu canal do Youtube, eles explicaram que o Transtorno do Espectro Autista tem se tornado cada vez mais conhecido na sociedade. Características básicas da condição, como a dificuldade em olhar no olho das pessoas ou inadequação social, eram vistas como timidez, um exemplo. Hoje, elas entendem serem sinais de autismo. Além disso, a comunidade científica compreende que o autismo é um transtorno neurológico, ou seja, é uma condição extremamente vasta e complexa. O entendimento em torno do autismo tem crescido bastante nos últimos anos, daí porque o número de pacientes também tem aumentado. Essa é uma característica das pessoas com deficiência. A complexidade das condições torna extremamente difícil você categorizar uma deficiência, uma síndrome ou uma condição. A Ciência evolui e nosso entendimento deve acompanhar essa evolução também, não ficar procurando pelo em ovo ou agulha no palheiro.
O tema da pessoa com deficiência merece todo respeito e responsabilidade. Fernanda Cavalieri, fundadora do Movimento Fortaleza Azul, que assinou a coluna Autismo – O Espectro, em Sem Barreiras, elencou diversos fatores que tornam a vida de famílias de pessoas com autismo bastante difíceis. Uma delas é o fator financeiro. “O autismo (em todos os graus) traz uma carga emocional e financeira para a família. A falência econômica acontece porque o acompanhamento é multidisciplinar, intensivo e de longo prazo”, escreveu. A necessidade de conciliar vida profissional com o cuidado do(s) filho(s) autista(s) é outro fator necessário de ser estudado. O autismo exige intervenção multidisciplinar, o que significa diversos profissionais atuando em conjunto para ajudar a criança no seu desenvolvimento pessoal, familiar e social. Como manter uma rotina de emprego e levar o filho a várias consultas diárias? E quando ocorrem crises, que podem acontecer a qualquer momento do dia, o pai ou a mãe precisa largar o emprego e correr para acudir o filho.
Donald Trump desconsiderou tudo isso e contribuiu(#sqn), acrescentando mais alguns fatores: medo, culpa, pânico, paranoia e estigmatização.
Sem nenhum comentário