Carly Fleischmann é um exemplo de superação contra o autismo
A atriz Bruna Linzmeyer, intérprete da garota autista Linda (leia mais aqui), de Amor à Vida, afirmou ter estudado o autismo por nove meses antes de assumir o papel. “Visitei instituições, li muitos livros e assisti a muitos filmes, entrevistas, vídeos e palestras”. Segundo a atriz, uma de suas maiores inspirações foi a canadense Carly Fleischmann, diagnosticada aos dois anos de idade com autismo severo e retardo mental grave. Carly apresentou comprometimento motor com atraso de funções básicas como sentar e andar, manifestação de movimentos constantes e repetitivos e não desenvolveu a fala, ao contrário de sua irmã gêmea Taryn, que se desenvolvia normalmente. Com um diagnóstico tão sombrio, ninguém esperava que um dia Carly pudesse levar uma vida ‘normal’. Os progressos eram mínimos e todos pareciam se conformar com a sua situação. Carly estava perdida em seu próprio mundo.
Seus pais, Arthur e Tammy, no entanto, nunca desistiram da filha e jamais perderam a esperança e a força necessária para lutar pelo bem estar dela. Desde os três anos, as terapias eram intensivas e sem interrupção. Eram 40 a 60 horas de terapia semanais. De três a quatro terapeutas trabalhavam com a menina diariamente e, quando os pais não viam resultados em uma certa abordagem terapêutica, logo procuravam outra. O tempo passou e, aos onze anos, sem nunca ter sido ensinada a ler ou escrever, muito menos a usar o computador, Carly se aproximou de um e digitou as palavras “hurt” (dor) e “help” (ajuda). Em seguida, correu para o banheiro e vomitou. Aquilo foi incrível, afinal até então ela era tida como deficiente mental, incapaz, desconectada do mundo, e de repente ela mostra que está plenamente ligada em tudo o que se passa, que domina a linguagem, que sente da mesma forma que qualquer um e que sabe se expressar.
A surpresa foi tamanha que o pai de Carly colocou em xeque o diagnóstico de retardo mental severo. Uma das terapeutas, inclusive, chegou a dizer que tal atitude sugeria que havia muito mais coisas se passando na cabeça de Carly do que se poderia supor até então. Depois disso, os pais passaram a estimulá-la a escrever, mas ela resistiu a se comunicar novamente. Tentaram por meses, inclusive submetendo seus pedidos ao ato dela digitar no computador. Um dia, porém, ela resolveu desabafar seus sentimentos e acabou revelando uma enorme capacidade de articular idéias, mostrando que tem entendimento de sua condição, que sente o mundo ao seu redor, que sabe onde está, com quem e o que faz. Ela digitou: “sou autista, mas isso não me define. Conheça-me antes de me julgar” ou “se eu não bater a cabeça parece que eu vou explodir, eu tento não fazê-lo, mas não é como apertar um botão”, diante de seus gestos e atitudes estranhas. Escreveu também “eu sei o que é certo e o que é errado, mas é como se eu lutasse contra o meu cérebro o tempo todo”, “eu queria ir à escola como uma criança normal, mas não quero que fiquem com medo de mim quando eu bater na mesa ou gritar” e ainda “as pessoas pensam que sou burra porque não sei falar”.
Essa última frase mostrou um pouco do estigma que ela carregava, ficando bastante claro o quanto ela sofreu com a subestimação, a indiferença, o desprezo, o preconceito e a desinformação das pessoas que a rodeavam. Diante disso tudo, os médicos reconsideraram o diagnóstico de retardo mental severo. Arthur ficou radiante por poder, finalmente, se comunicar com a filha. Ele declarou: “parei de olhar para ela como uma pessoa incapaz e passei a vê-la como uma adolescente sapeca”. Uma das terapeutas lhe perguntou: “por que os autistas tapam os ouvidos, balançam as mãos e fazem sons estranhos?” Carly respondeu imediatamente: “é a nossa maneira de drenar a entrada sensorial que nos sobrecarrega. Nós criamos ‘outputs’ (saídas) para bloquear ‘inputs’ (entradas de informações)”. O cérebro de Carly se sobrecarrega com sons, luzes, sabores e aromas. Ela explica: “nossos cérebros são conectados de forma diferente. Nós absorvemos muitos sons e conversas ao mesmo tempo e isso, às vezes, incomoda. Eu tiro centenas de fotos de uma pessoa quando olho para ela. Por isso, é difícil ficar olhando para alguém durante muito tempo”.
Arthur Fleischmann tem recuperado todos os anos que ficou sem contato e comunicação com a filha. Ele afirmou que “nesses anos em que temos nos comunicado, ela nos disse coisas impressionantes, coisas que nos deixam perplexos, tipo ‘querido papai, adoro quando você lê para mim. Sei que eu não sou a menina mais fácil de cuidar deste mundo, mas você está sempre me dando forças. Te amo’. Eu perderia todas as minhas noites de sono para ouvir isso, gastaria todo o nosso dinheiro simplesmente para ouvir isso”. Alguém perguntou a Arthur o que foi que Carly escreveu que mais o deixou emocionado. Ele respondeu: “você não faz idéia de como é ser assim como eu. Eu queria que, pelo menos por um dia, você pudesse ficar dentro do meu corpo”, teria dito ela.
Hoje com 19 anos, Carly Fleischmann já publicou um livro, Carly’s Voice, com a ajuda do pai, baseado em seus depoimentos no computador, criou um blog (https://carlysvoice.com/) e uma conta de twitter (@CarlysVoice) e facebook. Em 2012, uma agência produziu o curta-metragem Carly’s Café (https://carlyscafe.com/), em que dá uma pequena amostra do mundo de Carly, com o expectador assumindo seus olhos e ouvidos. O curta foi premiado no Festival de Cannes no mesmo ano.
Em sua página do facebook, Carly postou uma foto ao lado de sua amiga Mia, no dia da sua formatura no segundo grau. Ela escreveu (em tradução livre): “a vida é feita de desafios para você fazer coisas que ninguém pensou que você fosse capaz de fazer. Para a maioria das pessoas, ir ao primeiro dia de segundo grau, é assustador. No entanto, quando eu fui a um colégio regular pela primeira vez, eu estava apavorada. Eu sou uma pessoa que não fala, porém eu tenho uma voz que é mais alta que as palavras. Quando cheguei na escola, mostrei aos professores que minha voz era mais alta do que as da maioria dos estudantes, tirando nota dez nos trabalhos. Participei das discussões na classe e fiz com que todos ouvissem minhas idéias. Fiz amigos que gostam de mim por quem eu sou e não pelo que as pessoas querem que eu seja. Eu me integrei na escola e criei memórias que ficarão para sempre. Hoje, estou aqui diante de vocês com minha amiga Mia, a oradora da minha classe, e uma pessoa que me ensinou a ser amiga. Nós duas subimos no palco e eu pude fazer o que a maioria das pessoas pensam que um não-falante faria. Esta foto é bastante apropriada para ser colocada no meu mural, pois ela é a prova de que sonhos se realizam se você realmente batalhar por eles. Universidade, aqui vou eu”. Carly foi aprovada na Universidade de Toronto, tendo se inscrito no programa de Bacharelado em Artes da Victoria College, que possui uma longa tradição literária. Carly quer ser jornalista.
1 Comentário
Emocionante . Esperançoso . Desafiador.Quando começarmos a tratar dos autistas como seres humanos iguais a nós , ricos em complexibilidades físicas psíquicas e emocionais estaremos interconectados e por fim irmanados.A humanidade é viável, cabe a nós todos provar nossa viabilidade.
Felicidades Carly.