Mulheres com deficiência enfrentam dupla desvantagem
A escolha do dia 08 de março para o Dia Internacional das Mulheres tem algumas justificativas controversas. No dia 8 de março de 1857, trabalhadores de uma indústria têxtil de Nova Iorque fizerem greve por melhores condições de trabalho e igualdades de direitos trabalhistas para as mulheres, sendo duramente reprimido pela polícia. Em 1908, trabalhadoras do comércio de agulhas de Nova Iorque, fizeram uma manifestação para lembrar o movimento de 1857 e exigir o voto feminino e fim do trabalho infantil, sendo igualmente reprimido. No dia 25 de março de 1911, cerca de 145 trabalhadores (maioria mulheres) morreram queimados num incêndio numa fábrica de tecidos em Nova Iorque, provocando várias mudanças nas leis trabalhistas e de segurança de trabalho. O dia 08 de março foi decidido como Dia Internacional das Mulheres em 1910, durante uma Conferência na Dinamarca, mas, somente em 1975, durante o Ano Internacional da Mulher, a Organização das Nações Unidas (ONU) oficializou a data. Este texto, contudo, não irá se centrar em datas ou problemas enfrentados pelas mulheres brasileiras. Para isso, clique aqui e aqui.
O texto irá se centrar nas dificuldades enfrentadas pelas mulheres com algum tipo de deficiência. Pesquisa da International Network of Women with Disabilities (INWWD – Rede Internacional de Mulheres com Deficiência) aponta que, aproximadamente, 40% das mulheres com algum tipo de deficiência já tenha sofrido violência doméstica, no mundo. Os dados são da promotora de justiça, Stella Cavalcanti, passados durante o seminário Uma reflexão sobre a violência contra a mulher e a mulher com deficiência. Segundo ela, as deficientes sofrem mais do que as demais pela dificuldade de denunciar seus agressores, normalmente familiares ou cuidadores. “As mulheres com deficiência, além de ter medo de denunciar, ainda sofrem com a violência institucional por não terem credibilidade, pelas pessoas acharem que estão dando uma de vítimas por serem deficientes. A situação é grave e este debate é justamente para alertar de que essas mulheres devem procurar os órgãos responsáveis e fazer a denúncia porque elas sofrem várias discriminações”, ressalta.
A deputada federal Mara Gabrilli (PSDB-SP) conta, no site Vida Mais Livre (acesse aqui), a história de uma canadense com deficiência física, que por seis anos, sofreu abusos do próprio marido, de todos os tipos – sexual, emocional, psicológico e físico. “Meu marido ficava furioso quando eu me recusava a fazer sexo e ele continuava a gritar comigo e me agarrava até eu desistir, só para calar a boca dele. Ele me controlava, não me deixando sair do quarto, jogando ou quebrando minhas bengalas. Certa vez, ele rasgou meu pijama enquanto eu dormia”, conta. Segundo a parlamentar, há também a violência velada, cuja origem está na forma como a sociedade age (e reage) diante de uma mulher com deficiência. As pessoas não estão habituadas a encará-la como uma cidadã comum. Muita gente acredita que uma mulher com deficiência não pode ser mãe, não pode namorar ou ocupar determinada posição no trabalho. O próprio olhar da sociedade a viola.
As histórias de mulheres com deficiência no sistema de saúde podem ser bizarras. Prova disso é a falta de equipamentos adaptados para que essa população tenha acesso a um acompanhamento preventivo contra doenças ginecológicas, câncer de mama ou mesmo fazer seu pré-natal. Não há postos de saúde acessíveis, tampouco equipamentos como mamógrafos adaptados. Ela é subtraída do acesso básico à saúde e até de um acompanhamento de sua gestação. É tolhida, simplesmente, de ser mulher em sua plenitude. O relato de uma mulher surda, que se comunicava por meio da Língua Brasileira de Sinais (Libras), deflagra tudo isso. Sem saber que daria à luz a gêmeos, ela parou de fazer força após a saída do primeiro bebê. A enfermeira, sem saber Libras, não conseguiu dizer para que ela continuasse a fazer força. A mãe perdeu seu segundo bebê.
Isso nos leva a um fato fundamental: a necessidade da comunidade médica estar atenta às condições particulares das mulheres com deficiências. A psicóloga e ex-titular da Coordenadoria da Pessoa com Deficiência (COPEDEF), da Secretaria de Desenvolvimento Humano da Prefeitura de Fortaleza, Ana Beatriz Praxedes, afirma que “é fundamental possibilitar a construção de práticas integrais de saúde que incorporem a dimensão dos direitos humanos de grupos que, historicamente, experimentam a violação dos mesmos, como mulheres e pessoas com deficiência, a fim de abarcar as diferentes dimensões da experiência vivida”. Beatriz complementa, dizendo que “a prática dos profissionais de saúde se inicia pela apreensão ampliada das necessidades, a partir de um olhar atento às demandas referidas e àquelas ainda não referidas, mas passíveis de uma ação preventiva ou de um diagnóstico precoce”. Em resumo, ela defende que o profissional de saúde esteja atento ao “cenário de vulnerabilidades” das mulheres com deficiência para que elas exerçam sua autonomia cotidiana.
A também psicóloga Maria (ela tem sua identidade preservada por Sem Barreiras), tetraplégica, conta que não usa o sistema público de saúde, devido “à burocracia de ter que se deslocar a vários médicos e vários locais para conseguir consultas e exames, fora o tempo de espera, toma proporções gigantescas para quem tem a mobilidade reduzida”. Maria não acredita que sua deficiência atrapalhe nos cuidados, “apenas exige uma administração melhor do corpo, mais complexa no sentido de estar sempre pensando nas diversas partes do corpo que precisam ser cuidadas, da higiene para evitar pegar infecção urinária no período menstrual, por exemplo”. Já a artesão Kátia Vasconcelos afirma que a principal dificuldade que enfrenta é com relação “à desinformação dos médicos e demais profissionais de saúde quanto a minha deficiência”. Kátia possui Osteogêneses Imperfeitas, uma doença genética, incurável, que deixa a pessoa com ossos extremamente frágeis e susceptíveis a fraturas. Além disso, ela se queixa de banheiros inacessíveis, em hospitais e clínicas, e a ausência de aparelhos adaptados. As fisioterapeutas Neuma Silveira e Camila Napoleão, em entrevista a Sem Barreiras, em maio passado, abordam a problemática do atendimento de saúde pública às pessoas com deficiência e a importância da fisioterapia para essas pessoas aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
No que se refere à construção da identidade feminina de uma mulher com deficiência e tudo o que o circunda – maternidade, relacionamentos, colocação no mercado de trabalho -, torna-se necessária a compreensão da identidade feminina como um tudo em nosso país. O Brasil é, reconhecidamente, um país de origem patriarcal. Por décadas, as mulheres foram sujeitadas a posições subalternas na sociedade, cabendo a elas apenas o papel de esposas, mães e donas de casa. A partir da década de 60, com o fortalecimento do movimento feminino, houve o empoderamento da mulher e ela começou a exigir e ocupar espaços que, antes, não lhes pertenciam. As mulheres saíram de casa e passaram a disputar os postos de trabalho com os homens, os bancos de faculdade e os demais locais de convívio social. A reação masculina veio, logicamente, não apenas em atitudes de descriminação – recusando emprego para elas -, mas também na criação de termos pejorativos para mulheres que trabalhavam fora e recusavam o papel de meras procriadoras.
Até os anos 1970, as pessoas com deficiência não contavam com qualquer independência em sua vida. Logo, a condição da mulher com deficiência era duplamente desigual. Se, por um lado, como mulher, foi-lhe negado acesso à educação e ao trabalho, por ser tida como “frágil” e “necessitar de proteção”, por outro, estava em um corpo que era considerado “anormal”, “doente” e inadequado para o meio social. Tal estigma ainda é agravado pela visão da sociedade que coloca um padrão aceitável no corpo feminino. A mulher deve ser bela (a revista Veja cunhou a famosa definição do ‘Bela, Recatada e do Lar’ para a atual primeira-dama Marcela Temer, em contraposição à ex-presidenta Dilma Rousseff, uma forma do machismo da imprensa tradicional), de formas perfeitas, atrativa, e, para parte da sociedade, um corpo deficiente não se enquadra nesse padrão, o que agrava o preconceito. No mercado de trabalho onde se é comum pedir “boa aparência”, tal idealização do corpo feminino novamente coloca a mulher com deficiência em desvantagem.
Devido à existência do preconceito contra a pessoa com deficiência se verificar de várias formas, sua inserção no mercado de trabalho somente tem se efetivado através de leis e políticas públicas. Acredita-se que a pessoa com deficiência é um ser incapaz de exercer tarefas profissionais, dando a estas um tratamento assistencialista ao invés de criar serviços de avaliação e capitação. A Declaração Universal dos Direitos Humanos, em seu artigo 23, reconhece que “toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha do seu trabalho e a condições equitativas e satisfatórias de trabalho e à proteção contra o desemprego”. A Constituição Brasileira, em seu artigo 7º, proíbe a discriminação na remuneração e nos critérios de admissão dos trabalhadores com deficiência e, em seu artigo 37, VIII, prevê a reserva de percentual de vagas no setor público exclusivamente. Já no setor privado, foi o plano infraconstitucional, com política de cotas instituída em 1991, que tratou da reserva de vagas, sendo atualmente o principal mecanismo de inserção trabalhista disponível às pessoas portadoras de deficiência.
A análise do impacto da Lei de Cotas e de seus resultados é feita pelo banco de dados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS), do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), que, em 2007, pela primeira vez, incorporou a questão da deficiência em seu questionário. De 2007 a 2011, a RAIS mostra que o número de vínculos empregatícios ativos aumentou, porém o de pessoas com deficiência, entre ligeiras elevações e diminuições, se estagnou em menos de 0,70% do total dos vínculos empregatícios. Os deficientes físicos representam a maior parte e os de deficiência mental e múltiplas, a menor. Ainda de acordo com a RAIS, os rendimentos médios caíram, entre pessoas com deficiência, em 7,29%. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre pessoas sem deficiência, a participação dos homens, na população economicamente ativa, é 34% maior que a das mulheres. Em pessoas com deficiência, tal diferença corresponde a 30%. Dos 325,3 mil vínculos declarados como de pessoas com deficiência, 213,8 mil eram do sexo masculino e 111,4 mil, do feminino. Os números indicam que ser mulher e deficiente caracteriza dupla desvantagem no mercado de trabalho brasileiro, com elas recebendo até 90% menos do que mulher sem deficiência.
As mulheres com deficiência suportam, simultaneamente, os reflexos da histórica discriminação pelo simples fato de ser mulher, assim como convivem com toda a carga discriminatória em decorrência da deficiência. Quando duas, três ou mais condições ensejadoras de preconceitos e discriminação se reúnem em uma só pessoa, fala-se em dupla, tripla ou múltipla desvantagem. Para superar essas condições adversas, entram em cena a família e a autoestima da mulher com deficiência. A artesão Kátia Vasconcelos reconhece as muitas dificuldades que a vida impõe, mas não se deixa abater por elas. “Eu me vejo como uma mulher que não tem nenhuma deficiência, encaro bem ser deficiente e mulher, sou feliz, sei que sou uma guerreira, lutadora”, diz. Ela afirma ser realizada como mulher, “linda e atraente”. Ela também diz ser bem resolvida no quesito relacionamento. “Em uma fase da minha vida, percebi que teria dificuldade com um relacionamento, mas amadureci, deixei o tempo resolver e a vida me mostrar o momento certo para me relacionar com alguém”, conta. Segundo ela, esse momento chegou.
A psicóloga Maria nega que a deficiência interfira na formação de sua identidade feminina. “Sei quem eu sou, do que sou capaz, reconheço as limitações trazidas pela deficiência e sei que não são motivos para deixar de ter tarefas inerentes ao meu papel como mulher ou meu papel na família”. Ela ressalta a necessidade de ajudas ocasionais, mas fala que isso não tira sua “capacidade de comando, de saber cuidar, de fazer escolhas e tomar decisões”. Maria conta que teve e tem dificuldades em seus relacionamentos, mas esclarece que não pela cadeira de rodas em si, porém “pelo nível de limitação e por não ter o corpo com os padrões estéticos ‘desejáveis’”. Mesmo assim, diz que é possível ter uma vida plena, em todos os níveis, se houver trabalho e renda suficiente, acesso à saúde, meios de transporte, acessibilidade, pessoas para ajudar nas atividades cotidianas e convivência e amor mútuos com a família e amigos.
A deficiência, portanto, é “apenas uma condição da mulher”, nas palavras da psicóloga Ana Beatriz Praxedes, não é o que a define. Existem diversos mitos circundando a vida das pessoas com deficiência. Um deles é que elas não têm vida sexual. A doutora em psicologia clínica e mestre em psicologia social, Ana Rita de Paula, derruba esse mito, afirmando que a sexualidade está associada ao desenvolvimento da afetividade, à capacidade de entrar em contato consigo mesmo e com o outro, elementos fundamentais para a construção da autoestima, e não reduzida à função reprodutiva e genital, como a sociedade preconiza. “Considera-se belo o que é simétrico, e, pelas leis da natureza, o simétrico tem mais chances de ser saudável, portanto é mais capaz de propagar os seus genes. A aparência física é o principal quesito para a atração, na fase inicial das relações interpessoais, enquanto que a inteligência e a personalidade têm uma importância secundária nesse mecanismo”, afirma a autora do livro Sexualidade e deficiência: rompendo o silêncio (Expressão & Arte Editora).
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