Síndrome da Resignação é uma doença misteriosa que só ocorre na Suécia
Quando seu pai a retira da cadeira de rodas, o corpo de Sophie, de nove anos, parece sem vida. Mas o cabelo de menina é espesso e brilha como o de uma criança saudável.
Os olhos de Sophie estão fechados e, em vez de calcinhas, ela usa fraldas por baixo da calça de moletom. Uma sonda gástrica adentra seu nariz. Ela se alimenta desse jeito há quase dois anos.
Sophie e sua família são originários de uma das antigas repúblicas da União Soviética e pediram asilo à Suécia em dezembro de 2015. Vivem em acomodação destinada a refugiados, em uma pequena cidade na região central do país nórdico.
“A pressão sanguínea dela é normal”, diz a médica Elisabeth Hultcrantz, voluntária da ONG Médicos do Mundo.
“Mas seu pulso está um pouco acelerado hoje. Talvez ela esteja reagindo à visita de muitas pessoas hoje”.
Hultcrantz testa os reflexos de Sophie. Tudo parece normal. Mas a criança não se mexe.
A médica se preocupa, pois Sophie sequer abre a boca. Isso pode ser perigoso, pois a menina pode se engasgar se houver qualquer problema com a sonda gástrica.
Mas como uma criança que gostava tanto de dançar ficou tão inerte?
“Quando explica aos pais o que aconteceu, digo que o mundo foi tão terrível que Sophie trancou-se dentro de si própria, desconectando as partes conscientes de seu cérebro”, diz a médica.
Sophie não é um caso único: por quase vinte anos, a Suécia tem enfrentado uma misteriosa doença, batizada de Síndrome da Resignação. Ela afeta apenas crianças solicitantes de asilo ou refugiadas, e todas simplesmente “desligam”- param de andar, falar ou mesmo abrir os olhos. A boa notícia é que, eventualmente, se recuperam.
Mistério
Mas porque esses casos ocorrem apenas na Suécia?
Os profissionais de saúde tratando dessas crianças argumentam que o trauma é a causa deste afastamento das crianças. As mais vulneráveis são justamente as que passaram por episódios de violência extrema ou cujas famílias fugiram de ambientes perigosos.
Os pais de Sophie sofreram extorsão de uma máfia local em seu país de origem. Em setembro de 2015, o carro em que a família viajava foi parado por homens em uniformes policiais.
“Fomos retirados do carro à força. Sophie viu sua mãe e seu pai serem espancados”, conta o pai da menina.
Depois de libertar a mãe, que fugiu do local com a filha, os homens levaram o pai embora.
“Não me lembro de mais nada (do que aconteceu depois)”, diz ele.
A mãe de Sophie conta que a menina ficou transtornada com o sequestro do pai. Três dias mais tarde, ele finalmente fez contato com a família.
A família permaneceu escondida nas casas de amigos até viajar para a Suécia, três meses depois.
Ao chegar à Escandinávia, foram detidos por horas pela polícia sueca. A partir daí, a saúde de Sophie deteriorou rapidamente.
“Após alguns dias, percebi que ela não estava brincando muito com sua irmã”, diz a mãe de Sophie, grávida de oito meses.
Foi na mesma época que a família teve negado o pedido de asilo, em uma audiência na qual Sophie esteve presente. Naquele momento, ela parou de falar e comer.
Histórico
A Síndrome da Resignação foi reportada pela primeira vez na Suécia, nos anos 1990. Mas apenas no biênio 2003-05, mais de 400 casos foram registrados.
As chamadas “crianças apáticas” se tornaram uma questão política em meio a um debate crescente sobre as consequências da imigração na Suécia, país onde, segundo o Censo de 2010, quase 15% da população é imigrante.
Houve relatos de casos de crianças fingindo estar doentes e mesmo de pais drogando ou envenenando crianças para garantir direito de residência – nenhuma dessas histórias foi comprovada.
Na última década, o número de crianças afetadas pela síndrome diminuiu. O equivalente sueco ao Ministério da Saúde divulgou recentemente que houve 169 casos no biênio 2015-16.
A doença parece afetar crianças de perfis geográficos e étnicos mais vulneráveis: aquelas da antiga União Soviética, dos Balcãs, crianças ciganas e, mais recentemente, yazidis.
Apenas um pequeno número de afetados é de crianças desacompanhadas, muito poucas são asiáticas e nenhuma africana.
Ao contrário de Sophie, as crianças com a síndrome normalmente vivem na Suécia há anos quando ficam doentes, e já viviam vidas adaptadas ao estilo nórdico, falando até a língua local.
Inúmeras condições parecidas com a Síndrome da Resignação já foram observadas antes – entre sobreviventes de campos de concentração nazistas, por exemplo.
“Pelo que sabemos, nenhum caso foi identificado fora da Suécia”, diz Karl Sallin, pediatra do Hospital Universitário Karolinska, em Estocolmo.
Mas como uma doença pode respeitar fronteiras nacionais?
Sallin, que estuda a Síndrome da Resignação em sua tese de doutorado, diz não haver resposta definitiva para a pergunta.
“A explicação mais plausível é que existem alguns tipos de fatores socioculturais necessários para que a condição se desenvolva”, explica.
Sendo assim, ainda que não conheçamos o mecanismo e nem a razão disso acontecer na Suécia, o tipo de sintoma exibido pelas criança é explicado culturalmente: seria uma forma das crianças expressarem seu trauma.
Contágio?
Caso isso seja verdade, uma questão importante é levantada: poderia a Síndrome da Resignação ser contagiosa?
“Isso é meio implícito. Se você nutrir esses comportamentos em uma sociedade, terá mais casos”, diz o pediatra.
“O primeiro caso da doença foi registrado em 1998, no norte da Suécia e, assim que se tornou público, houve outras ocorrências na mesma área. Tivemos ainda casos de irmãos desenvolvendo a condição”, completa ele.
Mas Sallin ressalta que os estudos sobre a síndrome até agora não detectaram a necessidade de contato direto entre os casos.
Por sinal, há uma carência de pesquisas mais específicas sobre o assunto, especialmente em relação às crianças, o que impede a compreensão da doença.
Ao menos se sabe que as crianças podem se recuperar.
No entanto, é difícil para os pais de Sophie acreditarem nessa possibilidade. Eles não viram qualquer melhora no estado da filha em 20 meses. Seus dias são vividos em função do tratamento da menina – seja em exercícios para a manter a musculatura dela funcionando, alimentação, troca da fralda ou passeios.
“Você precisa ter o coração forte nesses casos”, diz Lars Dagson, pediatra de Sophie.
“Eu só posso mantê-la viva. Não posso fazer com que ela melhore. Nós, médicos, não podemos decidir se essas crianças vão ou não ficar na Suécia”, acrescenta.
Dagson faz parte de uma corrente de médicos tratando de crianças com Síndrome da Resignação cujo argumento é que elas se recuperam quando se sentem seguras. E que o direito permanente a residência é o que deflagra a convalescência.
“De certa forma, a criança vai precisar sentir que há esperança, algo para que valha a pena viver. Essa é a única maneira de explicar como, em todos os casos que vi até agora, o direito de permanecer no país pode mudar a situação”, diz.
Burocracia
Até recentemente, as autoridades suecas permitiram que famílias imigrantes com uma criança doente permanecessem.
Mas a chegada de mais de 300 mil pessoas nos últimos três anos mudou esse cenário.
No ano passado, uma lei temporária entrou em vigor para limitar o número de chances para solicitantes de asilo obterem residência permanente.
Candidatos recebem vistos com duração 13 meses ou três anos. A família de Sophie tem o primeiro, e o documento vence em março.
“O que vai acontecer depois? A família está no limbo”, diz Dagson, para quem Sophie não deve se recuperar em 13 meses.
“Tudo vai depender de como os pais vão se sentir, se vão acreditar que podem permanecer após 13 meses. Se eles não estão certos, não podem dar o Sophie a sensação de que está tudo bem”.
Mas em Skara, no sul do país, há evidências de cura mesmo sem que as famílias recebam direito a residência.
Trauma
“Do nosso ponto de vista, essa doença está ligada ao trauma, não ao asilo”, diz Annica Carlshamre, assistente social da Gryning Health, que administra Solsidan, um abrigo para crianças com problemas.
Os especialistas de Solsidan acreditam que crianças perdem sua mais significativa conexão com o mundo quando testemunham violência ou ameaça contra os pais.
“A criança percebe que ‘minha mãe não pode tomar conta de mim’. E perde a esperança porque sabem que são totalmente dependentes dos pais. Quando isso acontece, para onde a criança pode ir – ou a quem pode recorrer?”, explica Carlshamre.
A conexão familiar precisa ser reconstruída, mas primeiro a criança tem que se recuperar. Em Solsidan, o primeiro passo é separar as crianças dos pais.
“Mantemos a família informada sobre o progresso, mas não deixamos que fale com as crianças, porque elas precisam depender dos nossos funcionários. Ao separarmos as crianças, leva apenas alguns dias até vermos os primeiros sinais de melhora”, diz Carlshamre.
As crianças frequentemente ficam sem qualquer contato com os pais até que consigam falar com eles ao telefone.
Conversas sobre o processo migratório são proibidas. No abrigo, recebem roupas diurnas e noturnas e são retiradas das camas todos os dias. Funcionárias como Clara Ogren ajudam-nas a colorir ou desenhar, segurando o lápis em suas mãos.
“Brincamos por elas até que possam brincar sozinhas. Dançamos e ouvimos muita música. Queremos despertar seus sentidos. Colocamos um pouco de refrigerante em suas bocas para que provem algo doce. As que estão sendo alimentadas por sonda, a gente coloca na cozinha para sentirem cheiro de comida”, explica Ogren.
“Temos a expectativa de que elas queiram viver e sabemos que suas habilidades ainda estão ali, mas as crianças se esqueceram delas ou ou não conseguem mais usá-las.
Vivemos pelas crianças até que elas consigam viver por si próprias”, acrescenta.
O mais longo tempo que uma criança levou para se recuperar em Solsidan foi seis meses.
Das 35 crianças que Carlshamre tratou durante seus anos de trabalho, apenas uma delas teve permissão para ficar na Suécia enquanto ainda estava em Solsidan. As outras se recuperaram antes da concessão do asilo.
Esse tipo de tratamento, ainda não muito conhecido no país, poderia ajudar Sophie? Vinte meses é um tempo muito longo para uma criança estar desconectada do mundo. O que pode ajudar, na opinião de seus pais?
“Talvez a chegada do novo bebê”, diz o pai.
A mãe da menina apenas repete o que ouviu do pediatra.
“Para Sophie acordar, o médico diz que ela e a família precisam se sentir seguras”, defende.
No entanto, o maior medo da família é ser deportada e eventualmente encontrada pelos homens que a fizeram fugir.
* Texto de Linda Pressly, da BBC
** Para a segurança da família, o nome real de Sophie foi alterado nessa reportagem.
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