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Fazer humor não significa ofender ou humilhar

19/01/2018 Artigos, Deficiência Física, Notícias, Victor Vasconcelos 1
Foto em uma manifestação, em preto e branco, com um homem ao centro, em cores, todos com uma camisa amarela, um desenho preto de uma mão com quatro dedos no peito e a palavra BASTA!, em vermelho, embaixo

Senador Ronaldo Caiado (DEM-GO), em destaque, usando uma camisa com o desenho de uma mão com quatro dedos, em referência à deficiência de Lula

O brasileiro é conhecido por sua irreverência e sua capacidade de fazer piada com sua própria desgraça. Contudo, essas piadas, por vezes, passam dos limites e assumem uma conotação grosseira. É sobre elas que vamos conversar hoje. Os grandes “alvos” dos comediantes são as chamadas minorias – pobres, negros, mulheres, homossexuais. Quem nunca se acabou de rir nas ocasiões em que o famoso personagem Didi, do cearense Renato Aragão, se referia ao colega de cena Mussum como “Azulão”? Ou ainda nas interpretações do saudoso Costinha, das “bichinhas”? Piadas de português também sempre compuseram o cardápio dos programas de humor. Nelas, nossos descobridores são pessoas burras, ignorantes e atrapalhadas. “O português inventou o limpador de para-brisa; o americano o evoluiu, colocando para fora do carro”. Conversando sobre isso com um amigo português, ele me disse que, por lá, nós somos os alvos.

Pessoas com deficiência também já inspiraram piadas. Uma delas, por exemplo, foi dita por um artista de stand-up (não tenho permissão para citar seu nome): “o cantor Roberto Carlos será o primeiro perna de pau a ser aplaudido no estádio Castelão”. O Rei da música popular brasileira viria fazer um show em Fortaleza e o artista se referia à perna mecânica do cantor, perdida em um acidente de trem, na sua infância. Chamei a atenção do artista e ele se defendeu, dizendo que era apenas uma piada, que as pessoas precisavam ter bom humor e não levar tão a sério. Foi o mesmo argumento, por exemplo, do também comediante de stand-up, Danilo Gentilli, com a técnica de enfermagem Michele Rafaela Maximino, conhecida por ser a maior doadora de leite materno do país. Em 3 de outubro de 2016, Danilo Gentilli, no programa Agora É Tarde, da Rede Bandeirantes, utilizou uma foto de Michele, sem sua autorização, e a comparou com o ator pornô Kid Bengala, famoso por, supostamente, possuir um pênis muito grande. “Em termos de doação de leite, ela está quase alcançando o Kid Bengala”, afirmou Danilo. O comentarista Marcelo Mansfield completou a “brincadeira”, ao ser mostrada uma imagem dela ordenhando seu seio. “Os seios dela não são uma espanhola; são uma América Latina inteira”.

Moradora de Quipacá, zona da mata pernambucana, ela viajava 80km com o marido para doar o leite no Hospital e Maternidade Jesus Nazareno, em Caruaru, e era responsável por 90% do estoque da maternidade. Ela tirava cerca de dois litros de leite por dia e já havia doado 351,8 litros de leite materno. O resultado dessas piadas de péssimo gosto e caráter lamentável foi uma crise emocional grave em Michele, ocasionando a secura de seu leite. Quantas crianças ficaram sem esse alimento? E mais: por morar em uma cidade pequena e ser conhecida de todos, Michele foi forçada a se mudar. Após o programa e os comentários de Danilo Gentilli e Marcelo Mansfield, ela passou a ser chamada de vaca na cidadezinha. Michele processou Danilo e ganhou. O “comediante” foi obrigado a pagar R$ 200 mil a ela por danos morais. Os defensores de Danilo Gentilli criticaram a decisão, alegando ser censura e afirmando que ele é um comediante ‘politicamente incorreto’. Não é. Ele foi grosseiro, canalha. Esse tipo de comentário não é engraçado e não engrandece ninguém, ao contrário, denigre, ofende, agride. Michele não conseguiu mais doar leite e, repetindo, deixou dezenas de bebês sem esse alimento. O que ele conseguiu? Será que alguém riu desse comentário?


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O ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva também é alvo permanente de “comediantes”. As aspas na palavra, aqui, são diferentes das aspas utilizadas no parágrafo anterior. Se lá, o problema foi mau caratismo, agora é revanchismo político. Lula perdeu o dedo mínimo da mão esquerda em um acidente na metalúrgica onde trabalhava. Ele tinha 18 anos à época, em 1964, e foi indenizado em 350 mil cruzeiros. Diferente do que muitos afirmam, ele não se aposentou por causa do acidente, mas o problema não é esse. O problema é que resolveram atacá-lo e ridicularizá-lo por causa desse dedo. Lula virou o “nove dedos”, fizeram uma camisa com a estampa de uma mão com apenas quatro dedos (foto ao lado) e repetem isso em manifestações de rua contra o PT e ele. Fazem-no como se fosse engraçado, como se fosse permitido dentro da rivalidade política. Mal comparando é como chamar de macaco o goleiro negro adversário. “É coisa de estádio, nada sério”. É sério sim, muito. Atacar uma pessoa por causa de seu defeito físico é gravíssimo, mostra o nível de canalhice da pessoa, mostra que ela divide a humanidade entre os defeituosos e os perfeitos. Os primeiros, se não forem meus amigos, merecem ser achincalhados. Questão ideológica, política, é uma coisa; isso é grosseria, é falta de educação.

Não vou mentir que nunca ri de piadas das “bichinhas” do Costinha ou do “Azulão” do Didi. Mesmo hoje, aos 41 anos, ainda me divirto com vídeos antigos da Escolinha do Professor Raimundo. Mas, não me divirto com piadas de deficientes. Hipocrisia da minha parte? Talvez. Mau humor? Jamais. Defendo o humor, a piada bem contada, os bons comediantes. Porém, acredito que não é preciso ofender ou agredir alguém ou um setor para divertir as pessoas. Definitivamente, referir-se ao Roberto Carlos como “perna de pau” ou a Michele como “Kid Bengala” não são engraçado. Ponto final. Renato Aragão já imitou Roberto Carlos, Fafy Siqueira já o imitou também e tantos outros. Nenhum deles usou sua deficiência para tal e todos foram muito engraçados. Fazer humor requer, antes de tudo, inteligência. Aqueles que não a têm apelam para a baixaria e a ofensa gratuita.

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