Os Intocáveis nos ensina o valor da amizade e da vida
O filme Os Intocáveis (Intouchables, 2011, 112min), dos diretores Olivier Nakache e Éric Toledano, deixou algumas impressões em mim, algumas muito boas e outras um tanto frustrantes. Com excelentes atuações de François Cluzet e Omar Sy, conta a história verídica do milionário francês Philippe e seu cuidador argelino Driss. Na vida real, trata-se da história de Philippe Pozzo di Borgio, um ex-executivo de sucesso e herdeiro de duas tradicionais famílias francesas, que, em 1993, sofre um acidente de parapente e fica tetraplégico, e o argelino Abdel Sellou (teve seu nome alterado no filme), genioso e desinibido com as mulheres, mas que, por trás de sua fachada temperamental, também sofre da solidão e deslocamento. O filme, portanto, aborda uma improvável amizade entre dois homens de realidades e personalidades tão díspares, que termina por mudar, por completo, a vida de ambos. Abdel/Driss devolve a Philippe a alegria de viver, a despeito da deficiência, e o empresário apresenta um propósito ao funcionário, dando-lhe confiança e esteio, coisas que ele nunca teve.
Os Intocáveis foi largamente aclamado nos cinemas mundiais, tendo arrecadado cerca de U$ 360 milhões. A comédia dramática de Nakache e Toledano entrou para a história do cinema francês como a mais vista de todos os tempos e recebeu, dentre outras premiações, nove indicações ao Prêmio César, o Oscar do cinema francês, vencendo por melhor ator para Omar Sy. Antes de virar filme, a história já havia sido um bem-sucedido documentário de 2004 (À La Vie, À la Mort) e se transformado em dois livros que se tornaram best-sellers na França, um escrito por Borgio e outro por Sellou – o primeiro saiu no Brasil pela editora Intrínseca com o título O Segundo Suspiro (Le second souffle suivi du Diable gardien – leia aqui um trecho em pdf). Atualmente, Philippe está casado com Khadija e tem dois filhos adotivos. A família mora entre o Marrocos e a França. Já o argelino que deixou sua terra natal aos quatro anos para morar com os tios no subúrbio francês e conviveu com a marginalidade boa parte da sua vida, sendo inclusive preso por seis meses, casou e teve três filhos – dois meninos e uma menina. Ele e Philippe jamais desfizeram sua amizade, encontrando-se com frequência. Em 2012, escreveu o livro Você mudou minha vida (Tu as changé ma vie), com prefácio de Philippe di Borgio.
Contudo, como escrevi no início deste texto, o filme também me frustrou em alguns aspectos, do ponto de vista de uma pessoa com deficiência. Minha realidade é totalmente diferente da de Philippe, não só em termos financeiros, mas na deficiência. Enquanto ele sofre de tetraplegia e total ausência de sensibilidade do pescoço para baixo, fruto de duas vértebras fraturadas no acidente de parapente, eu tenho Osteogênese Imperfeita e nenhuma insensibilidade. Apenas a cadeira de rodas nos une. O grande problema do filme foi a rapidez com que ele abordou certos assuntos. Teve o mérito de não criar sensacionalismo nem buscar arrancar lágrimas no expectador, mas acredito que alguns pontos mereciam uma aprofundada um pouco maior. Creio que fazer um filme real não seja nada fácil, pois você precisa condensar anos e anos de experiência em poucos minutos para não ficar enfadonho. Mesmo assim, soou estranha a rapidez com que Philippe contra Driss (Abdel Sellou) depois de poucos minutos de conversa com ele durante a entrevista de emprego. Mais a frente, por volta dos 35 minutos, Philippe conversa com seu amigo Antoine e o explica que contratou Driss por ele não ter demonstrado compaixão. No entanto, em que momento Driss “falhou” em demonstrar compaixão se não vimos isso, se o roteiro reduziu a “entrevista de emprego” a meros minutos?
É possível que tenha ocorrido desta mesma forma na vida real, não sei, mas o filme mostra que Philippe decidiu contratar Driss após pouco mais de cinco minutos de conversa com ele na biblioteca. No primeiro dia de trabalho, sim, Driss não teve preocupações de sentir pena do novo patrão ou derramar lágrimas por sua condição adversa, mas repito: a decisão pela contratação veio antes. E aqui, uma pausa: compaixão é um sentimento extremamente dúbio. Ao mesmo tempo em que devemos sentir compaixão pelos que sofrem, por quem passa por momentos difíceis, temos de tomar cuidado para que o sentimento não se transforme em pena ou coitadismo. Infelizmente, nossa sociedade (e aqui me refiro à sociedade brasileira) tem o hábito de enxergar as pessoas com deficiência como coitadinhas e merecedoras de pena, como se não tivéssemos condições de fazer as mesmas coisas que as ditas pessoas “normais”. Por esta razão, senti que o roteiro pecou em não aprofundar a questão. Philippe insinua que estava cansado das pessoas demonstrarem compaixão com ele, mas o roteiro interrompe a temática e não volta mais a ela. Por que ele estava cansado? Quem demonstrava compaixão? Em quais momentos? Nada disso foi explicado e deveria. Perdeu-se uma excelente oportunidade de enviar uma mensagem clara à sociedade de que as pessoas com deficiência não querem nem precisam de compaixão.
O segundo ponto que o filme deixa de explorar ocorre por volta dos 45 minutos. Após uma noite em que Philippe acorda com um ataque de ansiedade, fruto da medicação, Driss o leva para um passeio pela cidade e o empresário relembra seus momentos antes da deficiência. Fala que não andava à noite a muito tempo, que não tem sensibilidade abaixo do pescoço, ao passar por algumas mulheres, e que o prazer sexual precisa ser alcançado de outras formas, citando os lóbulos das orelhas como zonas erógenas do corpo. Fuma maconha com Driss e, sentados em um café, conta do acidente, de como sempre levou uma vida de riscos, desafios físicos e competições e se emociona ao relembrar da ex-esposa Alice (na vida real, a esposa de Philippe se chamava Béatrice). Em meio ao diálogo, Driss comenta que se mataria se tivesse de viver a vida dele e Philippe retruca: “Nem mesmo isso é possível quando se é tetraplégico”. Uma frase forte e de muito significado, mas que o roteiro deixa no raso. Os motivos de pensar em suicídio são óbvios, mas ele já o tentou? Ele pensa mesmo nisso ou é coisa de momento de fragilidade emocional? Aqui, Driss poderia puxar a questão, mas não o faz. Ele demonstra compaixão e pede desculpas, desdizendo a ideia de que ele não tinha compaixão.
Os assuntos são postos na mesa, mas rapidamente esquecidos e superados. Por exemplo: a relação de Philippe com a filha Élisa (na vida real, o nome da garota é Laetitia). Em momento algum, eles aparecem juntos, em uma refeição ou passeio ou mesmo conversando. É difícil acreditar que pai e filha morando sozinhos em uma casa, o pai em uma cadeira de rodas e precisando de ajuda para, virtualmente, tudo e a filha não participar ativamente da vida dele. Somente na metade do filme, em uma cena totalmente solta, Philippe aparece dando uma bronca na menina. Mesmo no aniversário do pai, Élisa está ausente. Uma pena, pois renderia belas cenas dos dois juntos. O último ponto que vou abordar é o tema da sexualidade e dos relacionamentos. Philippe explica que não possui sensibilidade do pescoço para baixo e, por isso, é muito complicado manter qualquer relação amorosa. O filme mostra o empresário se correspondendo com várias mulheres, enviando-lhes poesias e pensamentos eruditos, mas jamais mencionando sua condição de deficiente físico. Uma delas, Eleonore, lhe manda seu telefone e pede uma fotografia dele. Driss força a situação e o faz telefonar para ela, mas Philippe não tem coragem de mandar uma foto sua atual, mandando uma de antes do acidente.
Deixei por último esse tópico não só por ter sido abordado no final do filme, mas porque é o que eu mais me identifiquei. Jamais tive ímpetos suicidas nem tenho filhos, mas a questão da autoestima é presente em mim. Assim sendo, entendo com perfeição a hesitação de Philippe em se expor a uma mulher por quem ele está interessado e pode, perfeitamente, não aceitar a deficiência dele. Philippe, então, opta por jogar sua carta mais alta, a intelectualidade. Nas cartas, ele abusa de termos rebuscados, poesias e expressões clássicas. Acredita conseguir impressionar a mulher e compensar a falta de uma comunicação mais íntima e pessoal. Se não fosse a interferência de Driss, ao telefonar para Eleonore e colocar o telefone para os dois conversarem, eles jamais se encontrariam. Diferentes dos outros tópicos anteriores, aqui eu gostei da forma como o roteiro explorou a questão. Novamente, não sei se aconteceu daquela forma com os dois amigos, mas certamente mostrou a importância de Driss para Philippe. Assim como a importância do segundo para o primeiro em outra cena, pouco depois desta, quando Philippe lhe dá conselhos de como lidar com o primo mais jovem.
Não sou crítico de cinema e não vou me atrever a fazer comentários técnicos sobre a obra. Preferi fornecer informações históricas e minhas impressões pessoais. Essa é a beleza da arte. Ela provoca reações individuais em cada um que a aprecia. Você, leitor ou leitora, que viu o filme, deve ter opiniões bem diversas das minhas e é válido. Assisti a Os Intocáveis com olhar de pessoa com deficiência e, neste sentido, o avaliei como se o filme houvesse sido feito para mim. Minhas expectativas e minhas frustrações de vida esperavam ter sido atendidas e não foram. Porém, isso não tira, em absoluto, o mérito do filme, que é muito bom. Dei muitas e gostosas risadas e aprendi muitas coisas. A principal lição que tirei do filme foi que a vida vale a pena ser vivida e que sempre há uma saída para nossos problemas. Philippe e Driss começam o filme de um jeito e terminam de outro. Ambos contribuíram para o crescimento pessoal um do outro. Ainda acho que o ritmo poderia ter sido um pouquinho mais lento para dar tempo de explicar certas situações, mas o resultado final foi altamente positivo. Philippe Pozzo di Borgio afirmou, em entrevista, que mudou muita coisa em sua vida após o acidente. “Primeiro de tudo, ver o mundo de uma cama ou de uma cadeira de rodas não é o mesmo que vê-lo em pé. Eu descobri que eu era frágil, não era eterno, e que o tempo contava”. Essa lição vale para todos nós.
Em janeiro deste ano, 2019, foi lançado, nos Estados Unidos, o filme Amigos para sempre (The Upside, EUA, 126min). A versão estaduniense do filme francês é dirigida por Neil Burger e estrelada por Kevin Hart (Dell, o empregado) e Bryan Cranston (Philippe, o milionário), o Walter White de Breaking Bad, tendo ainda Nicole Kidman no papel de Yvonne, a assistente de Philippe.
Serviço:
Os Intocáveis (Intouchables, FRANÇA, 2011, 112min)
Direção: Eric Toledano, Olivier Nakache
Elenco: François Cluzet, Omar Sy, Anne Le Ny, Audrey Fleurot, Clotilde Mollet, Alba Gaïa Kraghede Bellugi, Cyril Mendy, Christian Ameri, Marie-Laure Descoureaux
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