Homem com ELA fala de seu desejo de viver
Cai a tarde, o sol se filtra pela vidraça e os alvos cabelos de Francisco Luzón brilham intensamente na penumbra da sala da mansão alugada. Nessa manhã, em sua cama adaptada, olhou para María José Arregui, sua esposa, lançando insistentemente os olhos ao teto. Ela conta: “Está vendo Deus, Paco?’, lhe perguntei, porque com isso, ou você trata com humor ou te afunda. Aproximei dele o tablet e o que ele queria é que lavassem seu cabelo para que saísse bonito nas fotos”. De modo que, mesmo hoje não sendo dia porque dá muito trabalho e o fazem a cada dois dias, um dos três auxiliares que se revezam para atendê-lo as 24 horas lavou a cabeça de Paco e seu cabelo brilha. Luzón sorri ao escutar sua mulher. Impressiona ver a vivacidade de seus olhos em um corpo e um rosto absolutamente imóveis.
Pergunta. Como o senhor está?
Resposta. Fisicamente mal, 100% incapacitado. De ânimo muito bem, com o cérebro mais ativo e positivo do que nunca.
P. No que pensa um homem que só pode pensar?
R. Agora minha vida é um pensamento permanente. Penso que a vida é bonita porque me deu uma mulher e filhos exemplares. Penso, mais do que nunca, que tive sorte.
P. O senhor ficou bravo com o resultado? Quanto tempo demorou em assumi-lo?
R. Não, não fiquei bravo com ninguém, mas me destroçou. Interiorizei que tinha Esclerose Lateral Amiotrófica (ELA) após meio ano e vi que podia ser uma oportunidade de continuar sendo eu mesmo.
Luzón não fala e não escreve. Usa um tablet que colocam diante de seus olhos, olha letra por letra no teclado e um sintetizador reproduz suas palavras. Desse modo, auxiliado por María José, demorou dois dias para responder essas perguntas. Hoje nos recebe para recriar o processo e fazer as fotos e o vídeo. Pode ser a última entrevista frente a frente que concede.
Francisco ‘Paco’ Luzón (Cañavate, Cuenca, 71 anos), foi diretor do Banco Santander. Saiu em 2012 após uma aposentadoria milionária. No mesmo ano notou sintomas. E em 2014 foi diagnosticado com Esclerose Lateral Amiotrófica, doença degenerativa incurável com média de expectativa de vida de cinco anos. Em 2011, se casou pela segunda vez com Arregui, de 51 anos, proprietária da escola contratada pelo banco para ensinar português a seus diretores após sua expansão ao Brasil. No primeiro ano com ELA, Luzón e Arregui viajaram pelo mundo procurando soluções. Não existem.
Para encontrá-las, Luzón criou a Fundação que leva seu nome, na qual investiu 1,5 milhão de euros (6,5 milhões de reais) e a energia que lhe resta. Há um ano e meio, quando se submeteu à traqueostomia que lhe mantém vivo, se mudaram de seu espetacular apartamento da exclusiva rua Zurbano, em Madri, para esse chalé alugado nos subúrbios da cidade, adaptado a suas limitações de mobilidade a ponto de contar com uma entrada para ambulâncias, e de onde Luzón só sai para suas frequentes idas a La Paz, o hospital público no qual é atendido. O melhor, segundo Arregui, após estar em alguns dos mais renomados, e caros, hospitais privados.
Em uma gigantesca televisão vê de Game of Thrones às sessões do julgamento do procés e os telejornais diários, e ver o WhatsApp com sua mulher, filhos e netos são as únicas distrações do ex-banqueiro. Quase não recebe visitas, de modo que hoje é uma exceção em sua rotina. “Não facilitou as coisas para mim na entrevista”, nos diz o sintetizador ao entrar no quarto onde Paco descansa em uma cadeira-cama cercado por María José, Isaías, o cuidador da vez, e Lucas, o cachorro da casa, que pula em seu colo e lambe suas mãos. O barulho do respirador insuflando-lhe ar pela traqueostomia impressiona.
P. A ELA afugenta as pessoas?
R. Sim. Só conservo três amigos de meu passado. Mas ganhei muitos: doentes, médicos, cientistas, os patronos da Fundação e outras pessoas que me agradecem pelo que estou fazendo.
P. O que é a esperança para um homem desesperado?
R. A esperança é o sonho do homem acordado. Sonho com que a ELA tenha cura e, enquanto isso, os doentes sejam tratados com a dignidade que merece a pessoa no trecho final de sua vida. Não sou um homem desesperado.
P. Em qual credo ou trunfo se agarra para abrir os olhos a cada dia?
R. Acredito em Deus. Acho que o cosmos e a vida sem ele não fazem sentido. Todas as manhãs agradeço a Deus pelo novo dia.
P. Para que serve o dinheiro quando não serve para nada?
R. Não é verdade. Aí está o caso de Amancio Ortega e o meu. Criei uma Fundação para ajudar meus companheiros com ELA. O dinheiro é como o esterco: é inútil se não for espalhado.
P. A Pfizer não realizou um teste clínico por seu alto custo. O senhor foi banqueiro. Entende essa atitude?
R. Não. Isso é não ter responsabilidade social, imprescindível em todas as empresas, especialmente nas farmacêuticas.
P. O senhor é mais Quixote do que Sancho após a doença? Idealista ou pragmático?
R. Sou mais Quixote do que nunca. Consegui o que consegui porque sempre fui um sonhador, e agora mais do que nunca.
Anoitece. Luzón está cansado. Isaías precisou aspirar o muco de sua garganta. Na saída, cruzamos com Ainara e Jon, os dois netos pequenos de Paco, que vêm jantar e dormir na casa do avô, a quem contam suas aventuras antes de sair correndo pelo imenso jardim da casa. No domingo passado foram outros dois irmãozinhos, dois meninos de 13 e 5 anos de Aranjuez, com ELA por mutação genética, que comeram aqui convidados pelo homem que dá nome à Fundação que pesquisa sobre sua doença. Na saída, a voz do sintetizador de Paco lembra a María José que nos dê seu livro, El Viaje es la Recompensa (A Viagem é a Recompensa), onde conta o que aprendeu com sua doença. Antes, lhe pergunto.
P. Há prazeres em sua vida?
R. Poucos. Desfruto pelo desfrute dos meus. Sem eles não viveria.
P. O que é a vida, para alguém que conhece a saúde e a doença, a pobreza e a riqueza, dar 240 voltas ao mundo e a prisão do corpo?
R. A vida é amor. Não como, não falo, não sinto cheiros, não me mexo, mas amo e sonho. Amarei a vida até o último segundo.
P. O senhor escolheu viver. Poderia não ter feito a traqueostomia e acabar com seu sofrimento, mas gostaria, simplesmente, de não acordar amanhã?
R. Sempre quero acordar amanhã. Plantaria uma árvore mesmo que o mundo acabasse amanhã.
P. Compreende quem decide não continuar?
R. Respeito profundamente. O Estado deve garantir a sobrevivência de quem decide continuar. É o desafio da Fundação. Que a sobrevivência não dependa do poder aquisitivo.
P. Imagine que fui diagnosticado com ELA. Me diga algo que não posso encontrar na Internet.
R. Viva cada minuto como se fosse o primeiro de sua vida.
* Matéria Luiz Sánchez-Mellado, de Madri para o El País
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