Pessoas achavam que ela estava bêbada
Neste dia 29 de fevereiro, é comemorado o Dia Mundial das Doenças Raras. Em anos bissextos, a data é celebrada no dia 28. Sem Barreiras publicou várias matérias, nos últimos anos, sobre o tema, que você pode acessar aqui, aqui, aqui e aqui. Neste ano, traremos dois depoimentos de pacientes de duas dessas doenças, Camila Tapia, que sofre de Ataxia de Friedreich, e Francisca Sales, portadora de Neuromielite Óptica Espectros, aqui. Ambas ficarão arquivadas na seção Páginas Especiais, no menu de links da parte superior deste Blog.
Hoje é comemorado o Dia Mundial das Doenças Raras. Camila Tapia, 36, tem uma dessas doenças, a Ataxia de Friedreich (clique aqui para saber mais dessa doença). Ela descobriu o problema aos 28 anos de idade, após três anos de investigação. Com dificuldade de andar, fala embolada e fraqueza, ela andava cambaleando e era, frequentemente, chamada de bêbada na rua. O nascimento do filho Théo, 4, trouxe motivação para ela continuar vivendo mesmo com a degeneração da doença.
“Até os 25 anos da idade, eu tinha uma vida ativa, normal, viajava, ia para a balada. Fazia faculdade de direito e só usava terninho e salto alto. O primeiro sintoma veio com a dificuldade de me equilibrar no salto. Passei a usar tênis e sapato baixo para ver se melhorava o equilíbrio, mas não adiantava. Eu não conseguia caminhar em linha reta, tombava para o lado que nem bêbada trançando as pernas.
Era constante escutar piadinhas de que eu era ‘pinguça’ e preguiçosa. Eu ia trabalhar e ouvia: ‘Já tomou uma logo cedo’. Minhas amigas me chamavam de preguiçosa, porque eu não aguentava ficar muito tempo em pé. Onde chegava, já queria sentar. Isso ocorria devido à fraqueza muscular. Ficava bastante chateada e deprimida com esses comentários.
A situação mais constrangedora foi uma vez que fui ao banco cambaleando. Apareceu uma ambulância do Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência) e um dos paramédicos disse: ‘Moça, você está passando mal, quase caindo, precisa de ajuda’. Nessa época já estava com outro sintoma, a fala letárgica. Respondi que estava bem. A outra paramédica disse: ‘Deixa, ela está embriagada’. Um monte de gente na rua viu essa cena. Morri de vergonha, queria me enfiar em um buraco.
Com o tempo, os sintomas foram piorando. Começou com o desequilíbrio para andar, depois veio a fraqueza, as dores musculares, não conseguia enxergar de longe as placas de trânsito e o ônibus, tinha problemas para me comunicar. Eu tinha uma loja de celular e prestava atendimento ao público por telefone e pessoalmente. Percebi que as pessoas não entendiam o que eu falava e pediam para eu repetir. Era como se eu ficasse com a língua presa ao falar. Minha fala era embolada.
Passei em mais de 30 médicos e gastei mais de R$ 20 mil em 3 anos
Durante três anos, passei em mais de 30 médicos em busca de um diagnóstico. Fui ao ortopedista, porque achei que tivesse algum problema na coluna e, por isso, não conseguia andar direito. Fui no otorrino com suspeita de labirintite. Também não era. Passei em vários neurologistas, eles diziam que era algum problema no cerebelo, na coordenação dos movimentos do corpo e do equilíbrio.
Um médico chegou a dizer que eu tinha esclerose múltipla. Nesse processo, sofri várias quedas: na cama, banheiro, escada, garagem. Rompi o ligamento do joelho e fiquei seis meses com uma tala, sem colocar o pé no chão. Fazia vários exames, de sangue, ressonância magnética, tomografia e nada apontava o problema. Já estava cansada de gastar tanto tempo e dinheiro. Em três anos, gastei mais de R$ 20 mil. Pagava, em média, de R$ 1.000 a R$ 1.500 em uma consulta.
“Já tinha desistido de descobrir o que tinha quando uma amiga comentou com a minha mãe que a filha dela tinha sintomas parecidos com os meus e indicou um neurologista especialista em doença neuromuscular”.
Fui para a consulta forçada. Chegando lá, o médico me examinou e disse que tinha quase 99% de certeza que eu tinha ataxia de Friedreich, mas que precisava de um exame genético para confirmar. Depois de alguns dias, o resultado confirmou a suspeita do médico. Ele me explicou que eu tinha ataxia de Friedreich hereditária, autossômica recessiva [entenda a condição mais abaixo].
“Achei que fosse tomar um remédio e ficar boa, mas aí veio o baque, ele me explicou que era uma doença rara, progressiva e sem cura”.
Ele me disse que, com o tempo, iria perder os movimentos da perna, do braço, o controle do tronco, não ia conseguir me manter ereta. Teria de fazer adaptações nas atividades do dia a dia e usar muleta, bengala, andador até chegar ao ponto de usar cadeira de rodas.
Perdi 14 kg e entrei em depressão, mas me reergui com o nascimento do Théo
Receber esse diagnóstico aos 28 anos de idade não foi fácil, fiquei arrasada, o pior era não ter perspectiva de melhora. Me senti com uma bomba relógio na cabeça que a qualquer momento ia explodir e eu ia morrer. Me sentia impotente. O médico foi realista em pontuar a gravidade da doença e dizer que minha vida ia mudar, e que eu teria de aprender a conhecer os meus limites.
Ele me indicou um tratamento com fisioterapia, terapia ocupacional e fonoaudiologia para reaprender a falar mais lentamente para as pessoas poderem me entender. O tratamento não visava cura, mas ter qualidade de vida.
Com três meses do diagnóstico, perdi 14 kg e entrei em uma depressão que achei que fosse me matar, e que ainda hoje, insiste em me visitar. Na época eu morava com o meu noivo e começamos a ter problemas conjugais.
Meu ex tinha conhecido uma Camila normal, saudável, com quem tinha planos de se casar e constituir família. A doença me mudou e ele não conseguiu acompanhar essa mudança. Ele tinha preconceito. Não andava mais de mãos dadas comigo, dizia que se eu piorasse nós íamos nos separar e falou que não queria mais ter filho com medo do bebê ter a mesma doença que eu. Terminei o relacionamento e cada um seguiu seu rumo.
Depois de um tempo, me relacionei com um rapaz e engravidei. Ele sabia e aceitava a minha condição, não demos certo por outras questões.
“Fiquei em pânico com a possibilidade do meu filho ter a ataxia de Friedreich. O neuro me explicou que o risco era baixo porque o pai não tinha o gene alterado”.
A única recomendação foi que, a partir do sexto mês, eu deveria desacelerar e repousar por causa do peso e do tamanho da barriga. A tendência era que eu ficasse mais cansada e com dificuldades para andar. Tive uma gestação tranquila, plena e feliz. Fiz o enxoval, ensaio de gestante, chá de bebê e tudo o que uma grávida tem direito.
Théo nasceu no dia 28 de dezembro de 2015. Com a chegada dele, veio também a progressão da doença. Já na maternidade, os sintomas ficaram mais intensos. Não conseguia mais me manter em pé, minhas pernas não sustentavam o meu corpo, eu as dobrava de fraqueza.
Ao chegar na casa da minha mãe, tivemos que colocar barras de segurança em quase todos os cômodos: banheiro, quartos, cozinha, escada. Não conseguia dar um passo sozinha, me desequilibrava e tombava. Precisava de apoio, me segurar nos móveis ou no braço de alguém.
Meu filho é parceiro e me dá motivação para viver
Nunca segurei o Théo no colo em pé, somente sentada. Mesmo com a ajuda da minha mãe, fazia questão de ser uma mãe ativa e de ter todos os cuidados com ele. Desde recém-nascido, usava o carrinho de bebê como andador improvisado e transitava com ele pela casa.
Para dar banho, minha mãe colocava a banheira com suporte dentro do box, eu ficava prensada entre os dois para não cair. Assim que terminava o banho, o colocava no carrinho com a tolha e levava para o quarto. Trocava a fralda e a roupa sentada na cama.
Quando ele começou a engatinhar, ficava na minha perna querendo colo. Mesmo sem entender, explicava que a mamãe precisava sentar para poder pegá-lo. Ele entendia e não chorava. No aniversário de um ano dele, comprei um andador para poder curtir a festa com ele e ficar livre, não queria ficar sentada a noite toda nem ficar pedindo ajudar para receber os convidados.
“Théo é um presente de Deus, ele me dá esperança e motivação para viver. Sem ele, a minha vida não teria sentido. Seria uma pessoa amargurada e infeliz”.
Hoje posso estar cheia de dor e nervosa, mas me esforço para ficar bem, porque sei que meu filho precisa de mim. Eu não posso me dar o luxo de ficar mal e de me entregar à doença.
Ele tem quatro anos e já tem uma consciência e percepção de que tenho algumas limitações. Ele é parceiro e companheiro. Abre o portão para eu sair, pega na minha mão e pergunta se preciso de ajuda, se oferece para pegar as coisas para mim, não deixa os brinquedos espalhados na sala para eu poder passar com o andador.
Tinha muito medo de que, quando ele crescesse, tivesse vergonha de mim por eu ser diferente das outras mães. Até o ano passado, não saía de casa pela falta de acessibilidade nas ruas. Comprei uma scooter e vou com ele ao parque, shopping e mercado. Ele fica todo orgulhoso quando o levo na escola de scooter.
Ele não vê o diferente como algo negativo, mas como uma coisa boa. Ele acha legal eu ser diferente.
Depois que o Théo nasceu, me aposentei por incapacidade permanente e mergulhei de cabeça na doença. Comecei a participar de grupos de apoio de ataxia de Friedreich no Facebook e a trocar experiência com outras pessoas com o mesmo problema. De 2017 a 2019, fui presidente da Associação Brasileira de Ataxia Hereditárias e Adquiridas.
Sou muito mais solidária a dor e às necessidades do próximo
Friedreich me tirou muita coisa, minha liberdade, independência financeira, a capacidade de ir e vir, meus sonhos. No momento em que se recebe o diagnóstico, a doença assume um papel significativo na vida do indivíduo, tudo fica em segundo plano.
Mas, apesar disso, me tornei uma pessoa melhor. Deus me colocou essa doença para uma missão maior, para ajudar meus semelhantes, aqueles que, assim como eu, convivem com uma doença rara. Hoje sou muito mais humana e solidária a dor e às necessidades do próximo, porque sei que existem pessoas em situações piores que a minha, e que precisam de motivação para continuar lutando e vivendo”.
* Matéria de Bárbara Therrie (em colaboração para o VivaBem)
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