Breves reflexões de um Manual Antirracista
Na última quarta-feira, 16, terminei de ler o livro Pequeno Manual Antirracista, da filósofa, professora e escritora Djamila Ribeiro. Leitura simples, leve e muito gostosa, levantou alguns pontos interessantes que trago para outro sistema de opressão, o capacitismo, que aflige as pessoas com deficiência. Lógico, minhas análises e analogias são de um leigo na matéria, que a conhece meramente como alguém que sofre na pele seus efeitos, mas que não tem embasamento teórico do assunto. Não se trata, portanto, de estabelecer equivalência entre racismo e capacitismo nem, muito menos, fazer avaliação crítica da obra da escritora. Irei levantar questões e propor reflexão sobre vários temas a partir das minhas observações e experiências pessoais. Djamila afirma, na página 08, que “o racismo é, portanto, um sistema de opressão que nega direitos, e não um simples ato da vontade de um indivíduo”. O capacitismo também é deve ser encarado como um sistema de opressão às pessoas com deficiência, levando em conta que “o termo deriva da ideia de ser esmagado”. É o que se sente, esmagado, por uma absoluta falta de humanismo e empatia das pessoas e autoridades locais e nacionais, que não providenciam intérpretes de Libras, escritos em braile, acesso físico a cadeiras de rodas e/ou aparelhos ortopédicos, transportes adaptados, etc, dificultando a quase o ponto de impedir as pessoas de sair de casa e viver em sociedade. Nossos direitos, portanto, são negados desde nosso primeiro minuto de vida.
Djamila Ribeiro, talvez não de propósito, reconhece o fato quando afirma, na página 09, que “é preciso ressaltar que mulheres e homens negros não são as únicas vítimas de opressão estrutural: muitos outros grupos sociais oprimidos compartilham experiências de discriminação em alguma medida comparáveis”. Bem no alvo. Capacitismo, racismo, homofobia, machismo e tantos outros se encontram aqui, mostrando como o Brasil é uma terra fértil para estudos sociológicos desta natureza. Contudo, o capacitismo se distancia do racismo no grau de desconhecimento do seu significado. Poucas pessoas, com a exceção dos ativistas do segmento, conhecem o termo e o utilizam. Capacitismo é a discriminação e o preconceito social contra pessoas com alguma deficiência. Em sociedades capacitistas, como a nossa, a ausência de qualquer deficiência é vista como o normal e pessoas com alguma deficiência são entendidas como exceções. É a concepção do corpo padrão. Quem não possui aquela anatomia definida, sabe-se lá por quem, é excluído, marginalizado. A deficiência é vista como algo a ser superado ou corrigido, se possível por intervenção médica. Um exemplo de postura capacitista é se dirigir ao acompanhante de uma pessoa com deficiência física em vez de fazê-lo diretamente à própria pessoa. Perdi as contas de quantas vezes isso aconteceu comigo em lojas, restaurantes ou mesmo na rua.
Na página 12, Djamila escreve: “não tenha medo das palavras “branco”, “negro”, “racismo”, “racista”. Dizer que determinada atitude foi racista é apenas uma forma de caracterizá-la e definir seu sentido e suas implicações. A palavra não pode ser um tabu, pois o racismo está em nós e nas pessoas que amamos – mais grave é não reconhecer e não combater a opressão”. Também nós não devemos ter medo de usar a palavra CAPACITISMO. Porém, devemos primeiro conhecê-la e entendê-la para, depois, reconhecê-la nas atitudes e situações do nosso cotidiano e, finalmente, denunciá-la. O entendimento do seu conceito, da sua origem e dos seus variados usos é importante para ensinarmos as pessoas e nos defendermos, exigir nossos direitos. Capacitismo, assim como o racismo, não é o ato ou ação de um único cidadão ou cidadã; é um método, uma prática. Os restaurantes não deixam de oferecer cardápios em braile, não porque o dono assim decidiu, mas porque é comum não pensar nisso, não considerar a importância do braile, não enxergar o deficiente visual como um consumidor em potencial. “Se aparecer algum cego, o garçom lê pra ele” é o pensamento corrente, a pessoa com deficiência como um ser dependente e incapaz de resolver suas coisas com autonomia.
“O início da vida escolar foi para mim o divisor de águas: por volta dos seis anos entendi que ser negra era um problema para a sociedade”, afirmou a autora, na página 13. No meu caso em particular, meu divisor de águas não foi o início da vida escolar, foi bem mais tarde. Aqui, estabelece-se outro ponto de distanciamento do racismo para o capacitismo. Aos olhos do cidadão saudável, as pessoas com deficiência são doentes, incapazes. Aos olhos de inúmeros cidadãos brancos, as pessoas negras são seres inferiores, sem direitos, que devem servi-los. São visões completamente diferentes. Voltando ao divisor de águas, admito que somente fui me dar conta de que nós, deficientes, somos um problema para a sociedade, já na fase adulta, quando adquiri consciência social. Em que sentido somos um problema para a sociedade? No sentido de que necessitamos de um olhar diferenciado para nossas limitações físicas e cognitivas. A dicotomia herói-coitadinho é bastante cômoda para a sociedade. Taxar uma pessoa de herói e/ou coitadinha tira de quem taxa a responsabilidade de olhar para aquela pessoa e enxergar uma outra pessoa, com direitos e deveres, como alguém que pode. Se trabalhamos, se estudamos, se terminamos uma faculdade, não somos heróis. Muitos de nós, e eu me incluo nesse rol, somos privilegiados pela condição social em que vivemos e pela família que temos. Esse privilégio torna nossa vida mais fácil ou menos difícil, mas não nos torna heróis, nos torna invisíveis. Herói não existe, é fruto de uma fantasia, é um ser imaginário. O rótulo de herói tira o sentido de humanidade da pessoa com deficiência.
Djamila fala em privilégio ao final da página 13. “Crianças negras não podem ignorar as violências cotidianas, enquanto as brancas, ao enxergarem o mundo a partir de seus lugares sociais – que é um lugar de privilégio – acabam acreditando que esse é o único mundo possível”. Crianças com deficiência também não podem ignorar as violências cotidianas. Devemos entender por violência todos os obstáculos já citados em parágrafos anteriores. Sair de casa e enfrentar as calçadas esburacadas ou ocupadas por carros estacionados, passar horas esperando um transporte público adaptado passar no seu ponto, torcer para o local aonde você vai ter uma rampa ou elevador ou piso tátil, estar acompanhado de alguém que fale Libras porque, certamente, na loja, no cinema, no restaurante, não haverá. Todos esses são exemplos de violência cotidiana. Violência não é somente física – dar ou levar porrada. É também na dignidade, na autoestima. Aliás, violência contra a dignidade pode ser muito mais dolorosa do que um direto no queixo. A autora escreve sobre as crianças brancas, que “enxergam o mundo a partir de seus lugares privilegiados”, e eu substituo a palavra ‘branca’ por saudável. Pessoas saudáveis, ou seja, que não têm deficiência enxergam o mundo a partir de suas experiências particulares. Até aí, nada de novo. Nós também o fazemos. Porém, as experiências particulares das pessoas saudáveis prejudicam o lugar social das pessoas com deficiência. Aí, é problemático. Já citei o termo e vou repetir: empatia. É necessário boa dose de empatia e consciência social. A ausência de um e de outro também é capacitismo.
“Como muitas pessoas negras que circulam em espaços de poder, já fui ‘confundida’ com copeira, faxineira ou, no caso de hotéis de luxo, prostituta. (…) Meu irmão mais velho tocou trompete por muitos anos, fazendo inclusive parte da Sinfônica de Cubatão, na Baixada Santista. Toda vez que dizia ser músico, perguntavam se ele tocava pandeiro ou outro instrumento relacionado ao samba. Não teria problema se ele tocasse, a questão é pensar que homens negros só podem ocupar esse lugar”. Citei este trecho, da página 14, pelo grau de simbolismo que ele possui. Nós, pessoas com deficiência, raramente somos vistos como alguém que pode exercer alguma função importante na sociedade, salvo aqueles mais famosos. Não é incomum ver o olhar de espanto nas pessoas ao dizermos que somos jornalistas, advogados, cantores, etc. Para elas, capacitistas, pessoas com deficiência não são capazes de galgar os degraus profissionais. Certa vez, estava passeando em um shopping da minha cidade, conversando com minha acompanhante, e ouvi duas mulheres cochichando ‘ele sabe falar’. Ou seja, até mesmo o ato de falar é encarado com espanto. Recupero aqui o conceito de violência. Sou jornalista formado, com vinte anos de experiência, e o fato que eu falo é motivo de surpresa para algumas pessoas. Claro, elas não têm obrigação de saber minha profissão ou meu tempo de experiência, mas igualmente não têm o direito de agir deste modo.
Estamos chegando ao fim e quero citar mais duas passagens do livro Pequeno Manual Antirracista, da filósofa, professora e escritora Djamila Ribeiro. Na página 16, ela escreve: “é importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. Portanto, frases como ‘eu não vejo cor’ não ajudam”. Invisibilidade. Muitos dos problemas enfrentados pelas pessoas com deficiência decorrem dessa palavrinha. Se somos invisíveis, não somos vistos; se não somos vistos, não somos respeitados. Precisamos ser vistos, ouvidos, cheirados, sentidos. Por fim: “pessoas brancas não costumam pensar sobre o que significa pertencer a esse grupo, pois o debate racial é sempre focado na negritude. A ausência ou a baixa incidência de pessoas negras em espaços de poder não costuma causar incômodo ou surpresa em pessoas brancas”, página 17. Encerramos com mais um ponto de convergência entre pessoas negras e pessoas com deficiência. Atualmente, vemos um grande debate nacional por mais presença feminina nas casas legislativas, o que está correto. Contudo, ninguém fala nada do fato de termos apenas uma pessoa com deficiência na Câmara dos Deputados e outra, no Senado Federal. São 594 assentos, somadas as duas Casas, e somente dois são ocupados por representantes do segmento de pessoas com deficiência. A baixa representatividade se estende para a cultura, a moda, o comércio, o jornalismo. Precisamos “invadir” esses lugares de fala e de poder se quisermos mudar o atual cenário.
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