Milly Lacombe: Eu nasci para ser pai

02/02/2022 Artigos, Depoimentos, Milly Lacombe (LGBTQIA+), Notícias 0

Estava almoçando fora com minha mulher quando ela, de repente, me disse essa frase: eu nasci para ser pai. Perguntei como assim e ela disse, olhando para uma árvore que estava ao nosso lado, que se fosse para seguir o pacto da paternidade ela super toparia ter filhos. Claro, respondi, faz todo o sentido. Eu também posso ser pai!

Ficamos as duas muito felizes com a descoberta, brindamos com nossos sucos, e começamos a pensar quem poderia nos querer como pais. Que tipo de pais seríamos (seremos)? Um tipo muito comum.

A gente pega a criança em fins de semanas alternados, mas talvez não em todos. Quando a gente pegar a criança, prometemos tirar muitas fotos e postar loucamente no Instagram. A gente na piscina com a criança, a gente no parquinho, a gente no pôr do sol… Nossa, vamos até trocar nossos celulares para pegar outros aparelhos com mais memória.

A gente vai super colaborar com o orçamento da criança. Mas, assim: na medida da nossa possibilidade, da nossa vontade, dos nossos desejos particulares. Claro que vai ser melhor, a partir de agora, não buscar registro em carteira porque, né, aí todo mundo sabe quanto a gente ganha e vão exigir demais. Mas, Temer e Bolsonaro já acabaram mesmo com esse negócio de carteira de trabalho, então nem teremos que passar pela situação de pedir que o empregador não nos registre.

Se houver mais pandemias, a gente prefere deixar a criança com a mãe. Temos algumas questões de saúde e, francamente, a mãe nessas horas é tudo o que a criança precisa. Se quiser visitar os papais, a gente pode até pensar, mas não sem teste de Covid antes. Pago pela mamãe.

Se não estivermos numa pandemia, as escolas estiverem abertas e, por exemplo, a criança cair durante o recreio, a gente espera que liguem imediatamente para a mãe e só nos procurem se for caso de vida ou de morte. Se a criança for inconveniente por qualquer motivo, ficaremos aliviadas em saber que a culpa recairá sobre a educação dada pela mãe. Como papais, a gente fez o que estava ao nosso alcance – e arrasamos.

Estamos muito animadas para ser pais dentro desse contrato e ajudar alguma mãe nessa jornada. Se a gente estiver de bouas, podemos até aparecer sem que seja nos dias estabelecidos. Não vamos deixar nada marcado porque nunca se sabe, mas vai quê.

Pausa no cinismo e nas generalizações

A figura paterna retratada acima já não é mais aceitável como foi um dia e muitos homens se deram conta disso. Mas, a maioria deles, a despeito de classe social e de raça, infelizmente, ainda não entendeu ou não está nem aí. E, mesmo os caras bacanas, que, de alguma forma, compreendem que a paternidade precisa ser redefinida e re-experimentada e estão correndo atrás de suas devidas responsabilidades, acabam se beneficiando das articulações patriarcais e machistas que nos organizam ainda hoje.

Minhas amigas casadas com homens bacanas, que dividem as tarefas em relação a filhos, ainda sofrem com um esgotamento e uma solidão que não precisariam existir, mas que existem porque recai sobre a mãe, com toda a potência da força de uma estrutura de séculos, um atarefamento e uma responsabilidade extra e desigual.

Por isso, conscientemente, eu não quis ser mãe e a decisão passa pela noção de que se exige de uma mãe um tipo de entrega que eu considero exagerada, cruel e inegociável. Deve haver muitas mulheres como eu por aí; mulheres que seriam ótimas tutoras de outros seres humanos, mas, para as quais, o contrato da maternidade não interessa por ser – ainda que potente e cheio de belezas – também perverso, injusto, solitário e esgotante.

Se pudéssemos encontrar um arranjo no qual ser mãe e ser pai fosse uma profissão mais leve para todos os envolvidos, talvez estivéssemos começando a construir uma sociedade mais colorida.

A maternidade nunca me seduziu porque sempre a associei a essa total abnegação da mulher que somos, a um cansaço desmedido, a uma romantização que serve bastante bem ao sistema que nos devora. O trabalho que se veste de amor, a responsabilidade que se fantasia de paixão, o atarefamento que se cobre de carinho e de cuidado compulsórios.

Novos arranjos para criar seres humanos poderiam construir uma sociedade na qual mães não mergulhassem em desespero por terem que fazer tantas coisas e absorver enormes responsabilidades. Na qual pais não precisariam ser chamados à luz da obviedade: colocou uma criança no mundo, vai ser preciso dividir igualitariamente as tarefas que envolvem a criação desse outro ser humano.

Uma sociedade na qual a enorme solidão da mulher que é mãe pudesse ser atenuada por arranjos outros, novas paternidades, novas maternidades, novos cuidados. Uma sociedade na qual, para começo de conversa, creches seriam fartas e gratuitas.

Nesse mundo como conhecemos hoje, eu realmente nasci para ser pai e minha mulher, genialmente, conseguiu abrir meus olhos. Um pai bacana, participativo e dedicado, mas um pai. É o desgaste, a solidão e a exaustão da maternidade que nunca me interessaram.

Enfim, quem aí tá interessada na nossa paternidade? Manda DM.

Dedico esse texto a minha mulher Paola Lins de Oliveira, a pessoa que diz as coisas mais inteligentes que eu conheço e que vai ser papai ao meu lado.

* Texto assinado pela jornalista Milly Lacombe, na Revista TPM.

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