Adoção é um ato de amor

Casal ‘saltou’ na fila de adoção ao escolher criança com Síndrome de Down
O blog Sem Barreiras recebeu o jornalista Antoune Nakkhle para uma conversa sobre adoção interracial. Ele é pai de Gabriela, uma mulher preta, que foi adotada logo após seu nascimento, apenas 28 horas depois. Como foi o processo de adoção? Por que uma criança petra? Quais as dificuldades que ele e sua então esposa enfrentaram? Qual a situação atual da adoção no Brasil? Estas e outras perguntas substanciaram a conversa e levantaram uma série de informações interessantes e reflexões bastante úteis para todos nós. Um dos principais pontos que ele abordou é que o motor principal de um processo de adoção é o amor. A cor da pele da criança se torna secundário diante do amor que os pais sentem em serem pais e em receberem aquela criança. Outro ponto que me impactou, de uma boa forma, é sua afirmação de que todos somos racistas, inclusive ele. Esta, talvez, tenha sido a principal reflexão do encontro.
Antes de entrarmos nas reflexões, vamos a alguns números relevantes. De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ, aqui), existem 5.228 crianças e adolescentes aguardando para serem adotadas. Na outra ponta, temos 33.480 pretendentes ativos buscando a adoção. Os dois números me chamaram a atenção, pois eu não esperava tamanha discrepância. Em teoria, se existem quase 7.000 famílias para cada criança disponível para adoção, por que ainda existem crianças na fila? A criança é incluída no Cadastro Nacional para a Adoção e os juizados e varas da infância são quem fazem o elo entre adotantes e os menores cadastrados. Não há uma maneira automática de vincular adotantes (a família) e adotados (a criança ou adolescente), o que pode parecer uma resposta à pergunta acima. No entanto, é necessário que haja esse vínculo, pois é o juizado e a figura do juiz ou juíza da Vara da Infância que podem proteger as crianças prestes a serem adotadas.
A demora, portanto, na conclusão do processo de adoção não ocorre por causa de burocracia ou lerdeza do sistema, e sim, pelas exigências feitas pelos candidatos à adoção, os adotantes, referindo-se à etnia, à condição de saúde e à idade do adotado. Segundo dados divulgados pelo jornal O Estado de São Paulo, 86% dos adotantes preferem crianças menores de 06 anos de idade, enquanto 92% dos adotados estão na faixa oposto, ou seja, têm mais de 06 anos. Além disso, 92% das famílias preferem crianças brancas, o que também diminui bastante as chances de uma adoção rápida e bem sucedida. Vale ressaltar que a maioria das crianças na fila de adoção são pardas, oriundas das camadas mais baixas da sociedade. Continuando, 67% dos adotantes querem crianças sem irmãos, estreitando ainda mais o funil das adoções. Em termos de crianças e adolescentes com deficiência física ou cognitiva, o índice de aceitação entre os adotantes não chega a 10%. As crianças com deficiência cognitiva somam 14% do total de crianças para adoção, mas apenas 9% foram adotadas. As crianças com deficiência física somam 6% do total, mas apenas 4% delas são adotadas. Novamente, os dados são de pesquisa do Estadão.
No Brasil Colonial, a adoção seguia as normas da Coroa Portuguesa e essas não mudaram com a independência do país. Era um processo informal de transferência de guarda para instituições de caridade ou para famílias dispostas a abrigar as crianças, mas não havia um vínculo legal e muito menos a garantia do chamado pátrio poder dos adotantes para os adotados. Além disso, a grande maioria dos adotantes não queria adotar um filho, e sim, conseguir um meio de obter mão de obra barata. A adoção somente foi regulamentada com o Código Civil de 1916. Não foi expressamente pelo Estado, mas por meio de um contrato entre as partes interessadas. Com isso, não havia um controle da garantia de direitos dos adotados, o que colocava muitos na mesma situação de antes: eram adotados para serem serviçais. Para complicar, os adotantes deveriam ter mais de 50 anos e a diferença de idade entre eles e os adotados deveriam ser 18 anos. Os adotantes também não poderiam ter filhos biológicos. O Código Civil de 1916 garantiu a transferência do poder pátrio dos pais biológicos para os pais adotantes, mas os filhos adotados não tinham os mesmos direitos dos filhos biológicos.

Gabi e seu pai Antoune Nakkhle, jornalista, assessor de comunicação e imagem.
A adoção somente se tornou um processo mais amplo e justo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a chamada Constituição Cidadã. O documento garante aos filhos adotados os mesmos direitos de filhos legítimos. Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 1990 (documento estabelecido para garantir o que estava descrito na Constituição), as regras de adoção se tornaram melhores para adotantes e adotados. Além do reconhecimento de igualdade entre os filhos adotados e biológicos, a idade mínima para alguém adotar abaixou de 30 para 21 anos de idade e a idade máxima do adotado, com plenos direitos, subiu de 7 para 18 anos. A diminuição de 50 para 30 anos como idade mínima para adoção havia sido estabelecida em 1957. A adoção por casais homoafetivos ainda não era permitida, pois a união homoafetiva era proibida pelo Estado brasileiro. Porém, um juiz da Vara da Infância e da Adolescência poderia autorizar a adoção de um casal homossexual caso uma das partes requisitasse como solteiro(a).
Como pudemos ver, as dificuldades de adoção no Brasil têm muito mais a ver com preconceitos e discriminações dos adotantes do que com a burocracia ou falta de crianças para serem adotadas. Aqui, então, eu volto ao primeiro parágrafo e lembro da frase de Antoune. “Eu sempre pensei ter uma larga experiencia com preconceito porque minha mãe nasceu com uma deficiência no pé e utilizava uma prótese”. Ele foi além: “a cada dia, sendo pai branco de filha preta, eu vejo o racismo em mim”. A reflexão é muito forte e muito corajosa. Poucos de nós teriam condições de olhar para dentro e dizer algo semelhante. Antoune comenta que várias pessoas se referem à adoção como um favor que os pais fazem à criança e ele refuta. “Ela queria uma família e nós queríamos uma filha. É uma troca”, disse ele. Quando criei o blog Sem Barreiras, em 2011, acreditava estar unido duas experiências minhas: ser jornalista desde 2000 e ser deficiente físico desde 1977. Em poucos meses, entendi que estava errado em ambas as experiências.
O preconceito é algo introjetado em nós pelo meio que nos cerca. A criança preta vê poucos amiguinhos pretos na escola para brincar. A pessoa com deficiência não encontra intérpretes de Libras em todos os lugares, livros em braile, rampas, elevadores, calçadas em bom estado. Por que não? Porque o preconceito que muitos negam existir impede que existam. Preconceito é uma chaga e precisa ser combatido sempre.
Assista aqui o vídeo do Bate-Papo com Antoune Nakkhle.
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